Quando iniciei esta viagem, pensava em assistir filmes realizados no Brasil e, a partir de sua fruição, buscar textos que me ajudassem a ampliar a visão de cada filme. Mas, ao batizar a série de "A volta ao mundo do cinema brasileiro em 80 filmes", de certa forma, deixei inconscientemente espaço para filmes de brasileiros realizados em outros países. Afinal, se um filme foi concebido e criado por um brasileiro em Paris, este é um filme francês ou brasileiro? A resposta exata não sei, mas para mim, no caso de Rien que les heures de Alberto Cavalcanti, filmado em Paris em 1926, essa obra-prima desse brasileiro é cinema brasileiro!
Fuçando no Youtube ao final da tarde encontrei uam versão restaurada do filme de Cavalcanti. Do que me lembro de sua biografia(PELIZZARI; VALENTINETTI, 1995) que li alguns anos atrás, ainda jovem, ele foi para Paris e atuou no campo do cinema. Depois foi para Londres onde atuou com a equipe pioneira dos documentários britânicos no General Post Office na década de 30. Na década de 50 veio para o Brasil e aceitou convite de Getulio Vargas para liderar iniciativa governamental no campo do cinema. Por fim, até onde minha memória me ajuda, participou da criação da Vera Cruz em São Paulo na década de 50, o sonho da Hollywood brasileira.
Imagem título de Rien que les heures |
O filme é do tempo do cinema mudo e a versão restaurada tem uma trilha sonora que não sei se é a mesma que acompanhava as projeções do filme à época de seu lançamento. Mas, de qualquer forma, mesmo sem a música, o filme de Alberto Cavalcanti soou para mim como uma poesia visual que nos mostra o cotidiano da vida parisiense nada glamurosa por um dia. Puro cinema poesia!
Como sempre, em minhas viagens pelo cinema brasileiro, entrei no Google Acadêmico e busquei textos sobre Rien que les heures. Encontrei dois artigos.
Um intertítulo de Rien que les heures |
No primeiro, Danielle Crepaldi Carvalho informa que, na Europa, Cavalcanti "teve invulgar importância como teórico e prático do cinema da “opacidade”, para usarmos o termo de Ismail Xavier, experiência que objetivava a criação de um objeto artístico autônomo em detrimento da mimese da realidade estabelecida pela decupagem clássica" (p. 132-133). No texto de Carvalho aprendi,também, que o filme de Cavalcanti é "considerado o inaugurador do gênero “sinfonia metropolitana”, no qual depois se inscreveriam “Berlin: Die Sinfonie der Grosstadt” (“Berlim: sinfonia da metrópole”, 1927), do alemão Walter Ruttmann; “Chelovek s kinoapparatom” (“O homem da câmera”, 1929), do russo Dziga Vertov e “São Paulo, sinfonia da metrópole” (1929), dos húngaros Adalberto Kemeny e Rudolf Rex Lustig" (p. 134).
Mas, o texto de Carvalho vai muito além desse papel informativo sobre o homem e sua obra-prima. A autora apresenta uma análise de planos, sequências, enquadramentos e cortes do filme enfatizando o uso da montagem paralela por Cavalcanti. A autora aponta, por fim, o diálogo que há entre o filme e os textos escrito por Cavalcanti que seriam publicados em formato de livro em 1953 (Filme e Realidade).
Reprodução de Rien que les heures |
O segundo texto, de autoria de Carlos Gerbase, traz o argumento de que o cineasta Peter Greenaway tem raízes modernistas que podem ser, segundo o autor, associadas aos filmes-sinfonias. Entre eles, Gerbase vai usar Rien que les heures como um dos exemplos de raízes modernistas deste cineasta considerado pós-moderno. Nesse caso, para Gerbase o ponto de união entre o filme modernista de Cavalcanti e as obras pós-modernistas de Greenaway é o uso de palimpsestos. Como o próprio Gerbase explica:
"O palimpsesto tradicional é formado pela
descoberta (arqueológica) de um texto que foi
apagado de um determinado suporte, para que este
recebesse uma nova produção textual. Temos,
portanto, dois significantes sobre um mesmo
pedaço de pergaminho, papiro, tela ou papel, sendo
um mais antigo que outro. Na acepção
contemporânea, artistas plásticos pós-modernos
constroem seus palimpsestos de forma intencional,
pela sobreposição de signos, que vão sendo
desvendados através de leituras mais atentas do
espectador. No cinema, trata-se de usar as
técnicas de fusão (passagem, normalmente bem
lenta, de uma imagem para outra), sobreposição
(convivência de duas imagens semi-transparentes
ocupando todo o quadro) ou divisão do quadro,
que mostra múltiplas imagens opacas ao mesmo
tempo.
Em “Apenas as horas”, Cavalcanti usa todos
estes efeitos, desde a primeira imagem, com o
título do filme. Greenaway, em seus filmes e
vídeos, é um especialista em palimpsestos" (p. 10).
E mais, para Gerbase, "Cavalcanti e Greenaway compartilham uma
crença: a de que o cinema não deve simplesmente
mostrar ou reproduzir analogicamente o mundo. O cinema deve simbolizar o mundo, como um
texto audiovisual que admita diversas camadas
sobrepostas, depois interpretadas pelo público" (p. 10-11).
Em suma, seja pelo filme, seja pelos textos que falam do filme, essa viagem foi muito inspiradora! Como sempre, finalizo com a ficha técnica e as referências citadas.
Ficha técnica (Fonte: IMDB)
Rien que les heures
Ano: 1926
País: França
Directed by Alberto Cavalcanti
Cast
Blanche Bernis
Nina Chousvalowa
Philippe Hériat
Clifford McLaglen
Music by Larry Marotta
Referências
CARVALHO, D. C. A poesia da cidade moderna: uma leitura de “Rien que les Heures” (1926), de Alberto Cavalcanti. Intertexto, n.26, p. 132-150, jul. 2012.
CAVALCANTI. A. Filme e Realidade. São Paulo: Livraria Martins Editora S. A., 1953.
GERBASE, C. As raízes modernistas de Peter Greenaway. Sessões do Imaginário - Cinema | Cibercultura | Tecnologias da Imagem, n. 17, p.8-12, 2007.
PELLIZZARI, L.; VALENTINETTI, C. M. Alberto Cavalcanti. São Paulo: Instituto Lina Bo P M Bardi, 1995.
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