Em agosto do ano passado, como parte de minha Especialização
em Cinema na Universidade Tuiuti do Paraná, participei de uma disciplina ministrada
pela professora Lílian Fleury Dória sobre “O Teatro no Cinema”. Foram quinze
horas de conversa e debate, intercaladas pela exibição de três filmes, que nos
ajudaram a refletir sobre uma indagação que a professor Lilian apresentou
quando fazia sua introdução à disciplina:
_
Quando um cineasta usa deliberadamente o teatro, como podemos avaliar esta situação?
Para
complementar esta questão, logo depois, surgiu mais um questionamento
inspirador para o módulo conduzido pela professora Lilian:
_ Por
que um cineasta escolhe a linguagem do teatro?
O uso
do teatro pode ser feito de várias maneiras no cinema, indo de uma simples
adaptação de um texto teatral para um texto fílmico, até uma completa transcriação
de um texto teatral, que serve como mote para uma nova forma de transmitir a
mensagem do texto-fonte. Entre os diversos aspectos mencionados ao longo das
quinze horas da disciplina, houve duas que me chamaram a atenção de forma
particular.
O primeiro diz respeito à
centralidade do ator no teatro e sua relação com a plateia. O cinema,
diferentemente do teatro, não conta com a presença física de atores e atrizes
em um palco, numa relação físico-emocional que afeta tanto plateia quanto
aqueles que estão no palco. A relação do espectador com o filme é mediada por
um aparato tecnológico que não se faz presente no teatro. Embora, às vezes, o
teatro faça uso de mídias visuais, estas raramente são centrais na relação do
espectador com o texto.
O
segundo aspecto diz respeito à adaptação ou transcriação do texto teatral para
o fílmico. Segundo a professora Lilian, salvo engano meu de interpretação do
que ouvi, o processo de transcriação tem a ver com a substância (essência) do
texto da outra arte. Ora, o uso do teatro no cinema não precisa ser uma
adaptação literal da história contada para o teatro, mas precisa de alguma
forma manter uma fidelidade com o que pode ser considerado o essencial da
mensagem teatral original.
O
debate dessas e outras questões foi intermediado pela exibição integral de Dogville de Lars von Trier lançado em
2003, César deve morrer de Paolo e
Vittorio Taviani lançado em 2012 e Anna
Karenina, também de 2012, dirigido por Joe Wright. Cada um desses filmes
usou o teatro de forma diferente. Em Dogville,
Lars von Trier narra uma história violenta, sem mostrar a violência de forma
explicita, e se utiliza de um palco dividido por marcas no chão que dividem os
espaços cênicos onde ocorre a história narrada. Os irmãs Taviani, baseiam-se em
texto teatral de Shakespeare (Júlio Cesar), para montar um documentário que
mostra vida de detentos que cometeram crimes violentos em uma penitenciária
italiana, ao mesmo tempo que relatam os ensaios desses detentos para a montagem
do texto de Shakespeare. Por fim, o filme de Joe Wright baseia-se no romance de
Liev Tolstói de mesmo nome. Nesse filme, o uso do espaço cênico teatral faz
parte da forma como o cineasta resolveu contar a história trágica de Anna
Karenina, com uma mistura eclética de elementos do cinema, teatro, dança e
música.
A possibilidade
de assistir e refletir sobre esses três filmes mostrou que a relação do teatro
com o cinema não se dá apenas pela adaptação de um texto teatral. Aliás, dos
três filmes, somente o dos irmãos Tavianni tem um texto teatral de referência.
A história de Dogville foi dirigida
pelo seu diretor, enquanto que Joe Wright baseou-se em um romance.
Decorridos
doze meses desse meu primeiro encontro com o estudo da relação do cinema com o
teatro, hoje tive a oportunidade de assistir na Cinemateca de Curitiba a Romance, filme dirigido por Guel Arraes,
com roteiro dele em parceria com Jorge Furtado, cujo lançamento se deu em 2008.
Na sessão tive a alegria de reencontrar a Francielly, colega do curso de
especialização em cinema da Universidade Tuiuti, que estava com seu namorado.
Saí do
cinema com vontade de retomar minhas reflexões iniciais sobre a relação
cinema-teatro. O filme de Guel Arraes baseia-se na história de Tristão e Isolda,
texto clássico cuja origem está ligada a uma antiga lenda celta do século IX (http://www.infoescola.com/literatura/tristao-e-isolda/).
O filme começa em um teatro e apresenta um diretor fazendo um teste com uma
atriz para a encenação de uma peça sobre Tristão e Isolda. A partir daí, a
história vai se desenrolando com ensaios, estreia, romance entre o diretor e a
atriz, temporada da peça, convite para a atriz ir atuar em novela, crise e tensão
entre os dois por causa desse convite, separação, sucesso da atriz na novela,
chegando, três anos depois, à filmagem de um especial de TV, baseado em Tristão
e Isolda, no qual a atriz representará novamente Isolda, e o diretor/ator de
teatro, seu ex-namorado, será o diretor.
Resolvi
apoiar minha reflexão em algum texto que pudesse, eventualmente, ter tratado da
relação teatro e cinema. Uma busca no Google
Acadêmico me revelou o texto Teatro e
Cinema de Gabriela Lírio Gurgel Monteiro.
O texto
de Gabriela Monteiro objetiva analisar, utilizando uma perspectiva histórica, a
relação entre cinema e teatro. Iniciando com um histórico da evolução do teatro,
a autora aponta como este se tornou cada vez mais diverso tanto em termos de
espaços cênicos (palco italiano, anfiteatro grego, tablado da comédia dell’arte,
espaço medieval e palco cinético), quanto em termos de formas de interação do
ator com a plateia, incluindo o uso de mídias visuais e sonoras. Depois, a
autora comenta sobre o surgimento do cinema, influenciado pelo teatro, que no
seu começo usa muito de planos estáticos e deslocamentos laterais dos atores. Além
disso, o cinema se utiliza de ferramentas teatrais, tais como, partes de cenários,
roldanas, etc. A autora aponta, também, que o cinema mudo foi marcado por
exageros interpretativos dos atores, talvez para compensar a falta da fala. Por
fim, Gabriela Monteiro, após uma discussão sobre a adaptação de textos teatrais
para o cinema, apontando suas limitações e possibilidades, inclusive lembrando a
experiência do teatro filmado, sugere que contemporaneamente os limites de coexistência entre as artes
não se configuram como fronteiras demarcáveis (p. 33). Seu argumento é de
que o cinema e teatro se interligam quando peças começam a usar imagens,
trechos de filmes, borrões, letterings, vídeos,
documentários, projetados em telas ou sobre corpos dos atores. Nesse sentido, a
autora afirma ser
a teatralidade um conceito relevante a esta discussão, na medida em que
representa um elo de ligação entre as duas. Ela é uma no palco e outra na tela
mas, sendo inerente a ambas as artes, é possível que a partir dela, possamos
visualizar as influências do teatro e do cinema e de que modo o cinema
transforma o material cênico em material fílmico e vice-versa (p. 34).
A
partir do texto de Gabriela Monteiro retorno ao filme de Guel Arraes. Percebo
que o uso que esse faz do teatro em seu filme parte de uma referência explicita
ao espaço cênico teatral que é mostrado como local de ensaio primeiramente, mas
depois na estreia da peça como espaço onde se relacionam atores, palco e plateia
na apresentação de uma narrativa. No entanto, embora a peça teatral mostrada
por fragmentos no filme preserva a fidelidade com a história de Tristão e
Isolda, Arraes ao contar a vida “real” do romance entre Pedro e Ana, vividos
por Wagner Moura e Letícia Sabatella, utiliza-se de trama semelhante ao drama
vivido por Tristão e Isolda, mas cuja trajetória terá um final diverso do
texto-fonte. Mas, fica uma pergunta: teriam Guel Arraes e Jorge Furtado
preservado a essência de Tristão e Isolda na história de Pedro e Ana?
Nesse
ponto, preciso expor minha interpretação sobre qual seria a essência ou
substância da lenda celta transformada em obra da literatura clássica. Para
mim, o drama vivido por Tristão e Isolda trata da possibilidade de apaixonados
viverem intensamente seu amor. Nesse sentido, enquanto foi vivido, o amor entre
Tristão e Isolda, ocorreu de forma intensa, embora com fim trágico. Por outro
lado, Pedro e Ana, assim como Tristão e Isolda sofreram intensamente seu amor,
mas com um final mais feliz. Nesse ponto, não posso deixar de lembra Vinicius,
o poeta, quando disse “que não seja infinito posto que é chama, mas que seja
eterno enquanto dure”. A substância da paixão de Tristão e Isolda e de Pedro e
Ana se revela nesses versos do poeta.
P.S.: Você, leitor ou leitora, deve estar se indagando por
que no título deste post, incluí o
subtítulo Reflexões tardias. Pois é,
a resposta é simples. A professora Lilian havia solicitado que cada aluno
fizesse uma reflexão sobre a relação entre teatro e cinema a partir de um ou
dos três filmes que assistimos em sua disciplina. Essa reflexão, em forma de
texto, serviria como avaliação da disciplina. Durante esses doze meses, ensaiei
a escrita desse texto algumas vezes, mas não me sentia pronto para fazê-lo.
Hoje, o texto se cristalizou em minha mente. Será que ainda dá tempo da Professora
Lilian aceitá-lo como avaliação da disciplina? A resposta não importa, mas foi
muito bom poder fazer essas reflexões tardias!