domingo, 19 de abril de 2015

Craca de Leite

Tem coisas que grudam na gente. São que nem craca de leite que vai se pegando na vasilha onde é fervido. Lava-se, lava-se, lava-se... Quando você pensa que conseguiu tirar tudo, enxágua a vasilha e pronto! Que nada! Ainda tem vestígio dela. Mais umas esfregadas. Pode ser que agora tenha saído, mas se a vista falha, alguma marquinha ficou.

Nossa vida é longa. Graças aos avanços da medicina, cada vez mais longa. Nascemos enrugados, mas, aparentemente, sem marcas definitivas. Logo depois do parto, após o primeiro banho, estamos limpinhos. Prontos para enfrentar os anos que vêm pela frente. De pele e mente preparadas para aquilo que o destino vai tentar grudar em nós. No meu caso, me aproximo dos 58 anos. Parece muito, mas ainda não me dei por satisfeito. Apesar de tantas cracas que tive que ir limpando, areando da vida, quero mais. Preciso de mais!

Ontem recebi pelo Facebook um link que me levou aos meus vinte anos. Uma viagem no tempo com a ajuda da memória coletiva. Quem me conhece, sabe que desde a adolescência, ir ao cinema faz parte de meu modo de entender o mundo. Ainda criança, troquei as idas dominicais à igreja pelas matinês do Cine Augustus da Londrina do final dos anos 60 e começo dos 70 do século passado. Hoje, depois de tantos anos, me dou conta que troquei uma fantasia por outra. A religião não me motivava, mas as idas ao cinema mexiam comigo. Me faziam pensar.

Muitas marcas surgiram nas salas escuras dos cinemas de minha vida. O primeiro exercício de autonomia – ainda criança ir sozinho ao cinema; a primeira namorada, que depois se tornou minha esposa, Telma, mãe de Paloma e Fernanda. Hoje somos bons amigos. Ver 1900, de Bertolucci, e depois refletir sobre o filme para escrever um trabalho da disciplina de sociologia. Terezinha Giovenazzi, irmã do ator Edney Giovenazzi, foi a professora que causou esta marca! Me dou conta hoje que deveria ter agradecido a ela a tarefa tão inspiradora! Uma boa craca que ajudou a tornar o cinema parte de meu modo de compreender o mundo e a vida.

O primeiro filme pornô, depois que acabou a censura no Brasil. O desejo por Dina Sfat (Macunaíma), Lilian Lemertz (Lição de Amor) e Helena Ramos (Mulher Objeto) que brilhavam nos filmes brasileiros de minha juventude! Teve também a Vera Fischer (Amor, Estranho Amor), mas dessa a Sara não gosta muito que eu fale. Não sei por que? As emoções dos filmes de Chaplin, as lágrimas inevitáveis em alguns dramalhões. A raiva com algumas porcarias.

Se você ainda não adivinhou, o link que recebi tem a ver com o cinema. É claro! É a digitalização das edições da Revista Cinema em CloseUp, publicada entre 1975 e 1979 (http://portalbrasileirodecinema.com.br/cinemaemclose…/indice). Documento histórico de valor inestimável que me fez lembrar muitas idas ao cinema. Esse é um tipo de craca que não quis nunca limpar! Muitos dos filmes que estão retratados nas edições da Cinema em Closeup fazem parte de minha trajetória pelo mundo das imagens e significados. Algum amigo mais sacana, vai dizer que chegaram a deixar calos nas mãos! Mas, não é só por isso...

Comecei esse texto, com um tom sombrio! Parecia que ia falar de coisas negativas, pois afinal, craca tem um som meio ruim, agressivo, não? Mas, as cracas que machucam, que doem, acabaram ficando de lado neste texto. Elas existem, mas estão em algum cantinho onde passam desapercebidas. Me ajudaram a compreender o mundo, mas deixa elas pra lá! O melhor é poder lembrar de cracas que, apesar dos esfregões da vida, conseguiram deixar sua boa marca na minha história. Vida longa a todos!