domingo, 26 de maio de 2013

A arte da visão

Livro de bolso que traz uma conversa entre Federico Fellini, Goffredo Fofi e Gianni Volpi. Além disso, comentários sobre Fellini feitos por Woody Allen, Milos Forman, Robert Altman, Sidney Lumet, Paul Mazursky, John Frankenheimer, Jim Jamursch, Spike Lee, John Landis, Oliver Stone, Adrian Lyne, Constantin Costa-Gravas e Louis Malle.
Ao final, Fellini faz breve comentários sobre seu 24 filmes: Mulheres e Luzes, Abismo de um sonho, Os boas-vidas, Agência Matrimonial, A estrada da vida, A trapaça, Noites de Cabíria, A doce vida, As tentações do dr. Antonio, 8 1/2, Julieta dos espíritos, Toby Dammit, Anotações de um diretor, Satyricon, Os palhaços, Roma de Fellini, Amarcord, Casanova, Ensaio de orquestra, Cidade das mulheres, E la nave va, Ginger e Fred, Entrevista, A voz da lua.
Imperdível!

FELLINI, Federico A arte da visão: conversa com Goffred Fofi e Gianni Volpi. São Paulo: Martins Fontes, 2012.

sábado, 25 de maio de 2013

CINEMA POESIA: A SEQÜÊNCIA INICIAL DO EVANGELHO SEGUNDO SÃO MATEUS DE PASOLINI

Em 1965, Pasolini proferiu uma palestra em Pesaro, Itália, durante o Festival do Novo Cinema que foi transcrita e publicada no Cahiérs du Cinéma, n. 171, de outubro de 1965. Para Pasolini, até os anos 60 vigorava uma máxima no fazer fílmico que dizia “nunca sentir a presença da câmara”, enquanto que os movimentos que ele enxergava em meados da década de 60 indicavam seu oposto, ou seja, “fazer sentir a câmara” (Pasolini, 1982, p. 46).
Mais à frente, Pasolini em sua locução evidenciou que o surgimento desse novo código técnico, manifestado pelo uso de objetivas diferentes em um mesmo rosto, do zoom, de travellings, câmara à mão, entre outros, nasceu de uma intolerância às regras, duma necessidade de liberdade insólita e provocadora, duma necessidade de divertimento autêntico, dum saudável gosto pela anarquia. Mas imediatamente se transformou em lei, patrimônio linguístico e prosódico que diz respeito, ao mesmo tempo, a todos os cinemas do mundo (p.49).
Essa noção do cinema-poesia já havia sido formulada por Buñuel. Sete anos antes de Pasolini, o cineasta espanhol manifestou seu desconforto com o formato tradicional do fazer cinematográfico. Coincidentemente, também em uma palestra, dada na Universidade do México em 1958, o cineasta do surreal fez críticas à forma como o cinema imitava o romance e o teatro, enfatizando sua limitação como meio menos rico que os dois anteriores na expressão de psicologias. Com esse embasamento, a partir da ideia que o cinema é o melhor instrumento para exprimir o mundo dos sonhos, das emoções, do instinto (BUÑUEL, 1983, p. 336), o cineasta espanhol defende um cinema que possa ajudar a expressar a vida subconsciente, tão presente na poesia, um cinema que abrirá o mundo maravilhoso do desconhecido, de tudo que não encontro nem no jornal, nem na rua (p. 337).
Sendo o cinema poesia uma forma de fazer cinema onde a câmara se revela ao espectador segundo a concepção de Pasolini, neste texto realiza-se uma análise fílmica da sequência inicial de seu filme O Evangelho segundo São Mateus. A escolha dessa sequência se dá por esta apresentar diferentes usos de enquadramentos, movimentos de câmara, planos e contra planos, que constantemente lembram ao espectador que o que se vê tem a intermediação de um artista e de artefatos produzidos pelo homem.
Pasolini nasceu em Bolonha em 1922 e foi brutalmente assassinado em 1975 nos subúrbios de Roma. Em 53 anos de vida, Pasolini exerceu múltiplos papéis se caracterizando como um intelectual. Albanese (1981) relata a obra de Pasolini em diferentes campos da Arte. Formado em Letras pela Universidade Bolonha, transfere-se para Roma em 1949 para viver ao lado da mãe. Foi professor, poeta, romancista, ensaísta, teatrólogo e tradutor (ALBANESE, 1981).
A jornada cinematográfica de Pasolini, segundo Albanese (1981, p. 21), começa como cinegrafista em 1954. Ele escreve e dirige seu primeiro filme em 1959 (A noite brava). Accattone (O vagabundo), tido como seu primeiro grande filme, surge dois anos depois. Depois se seguem Mamma Roma (1962), La Ricotta (1963) e O Evangelho segundo São Mateus em 1964. Entre 1965 e 1975, sua última década de vida, Pasolini realizou filmes marcantes, entre os quais, se destacam: Gaviões e passarinhos, 1966; Édipo rei, 1967; Teorema, 1968; Pocilga, 1969; Medéia, a feiticeira do amor, 1969; Decameron, 1971; Os contos de Canterbury, 1972; As mil e uma noites, 1974; e Saló ou 120 dias de Sodoma, 1975 (ALBANESE, 1981; PEREIRA, 2004).
Na visão de Pereira (2004, p. 15), Pasolini soube construir um modelo de cinema que sempre apontou para a inovação. Pereira (2004, p. 17-18) afirma que para Pasolini o cinema apresentava uma pulsação dinâmica, caracterizando um cinema existencial que traz para o centro do debate, a participação do espectador, muito antes de serem explicitadas as chamadas “estéticas da recepção”, isto é, o receptor é entendido por ele como um criador de sentido, um ativo partícipe do processo cinematográfico em sua concretização cotidiana.
Em seu texto, Pereira (2004) argumenta que Pasolini conseguiu estabelecer as diferenças entre o cinema de prosa e o cinema de poesia, recorrendo a uma lógica analógica, no sentido de que as duas formas de cinema
se distinguem pela extensão, alcance, abrangência e formas de constituição do sujeito receptor ou produtor. Quando tenta construir um modelo do cinema de poesia, Pasolini se utiliza de alguns sinais de identidade que apenas pretendem facilitar o entendimento do seu discurso, da sua fala, mas não conseguem dar conta da complexidade conceitual da sua própria formulação (PEREIRA, 2004, p. 18)
É nessa complexidade conceitual que nesse texto me aproximo da descrição de parte do texto fílmico d’O Evangelho segundo São Mateus de Pasolini, especificamente sua sequência inicial em que Maria e José encaram a notícia da gravidez de Maria. O filme é todo em preto e branco e os figurinos são típicos da época retratada. O Evangelho segundo São Mateus foi apresentado e premiado na XXV Mostra de Veneza. Ganhou também o prêmio Office Catholique Internazionale du Cinema. Esta premiação causou muita polêmica à época.
A sequência analisada dura três minutos e trinta segundos. O primeiro plano dessa sequência é um close de um rosto feminino com os cabelos cobertos por um véu preto e com expressão um pouco triste. Atrás do rosto feminino, há uma estrutura de pedras irregulares, sem possibilidade de identificar o que seja, apresentando um arco, também em pedras, só que mais regulares, que contorna a cabeça feminina, de um lado ao outro, se assemelhando a um halo. Há ruídos que se parecem com passos, mas não se identifica a fonte.
O segundo plano, também em close, apresenta um rosto masculino, calvo na parte superior frontal da cabeça, com uma expressão neutra, tendo às suas costas parte de uma estrutura de pedras. No terceiro plano, ainda em close, volta o mesmo rosto feminino, no mesmo local, e a mulher cerra os olhos e abaixa a cabeça. O quarto plano volta para o rosto masculino, no mesmo local, com uma pequena movimentação lateral como se fosse expressar alguma palavra. Todas as transições de planos são em corte seco e em todos os planos, também, há ruídos que se parecem com passos, mas não se identifica a fonte. As expressões faciais dos personagens se mantém como nos outros planos.
No quinto plano há uma mudança de enquadramento para um plano geral, onde se vê ao centro a figura da mulher grávida, com um vestido comprido em tom claro e o véu escuro chegando até seus pés, imóvel. A estrutura de pedra continua atrás da personagem, tendo alguns adereços de cenário: um balaio do lado direito da personagem e escadas e cabos de vassouras ao lado esquerdo, todos encostados na lateral da estrutura de pedra que parece uma parede. Há também, entre as escadas e a mulher, um ancinho encostado na parede frontal. Ouvem-se ruídos de passos.
O sexto plano é também geral com o homem ao centro vendo-se ao fundo uma parede de pedra que toma todo o fundo do plano, tendo em sua metade um banco de pedra e à esquerda do personagem um forno de pedras coberto por um teto. O homem se vira para a direita e caminha em direção a uma porta que leva para o exterior. Há dois utensílios doméstico, jarras em cerâmica, encostados no pilar que sustenta o teto próximo ao homem. Ruídos de passos do homem e canto vindo do exterior. Movimento de câmara acompanhando o homem caminhando até a porta. Corte seco para o próximo plano.
No sétimo plano há um retorno para o espaço onde se encontrava a mulher com enquadramento geral e câmara fixa. Esta se encontra mais distante, à frente de um espaço aberto que lembra uma porta, revelando que a estrutura de pedras é parte de uma casa. Nesse enquadramento o arco e peças de cenário do quinto plano estão à direita da personagem. Ouve-se música assobiada enquanto a mulher caminha em direção à câmara, se dirigindo a uma mureta de pedras à sua frente. Ouve-se canto de voz masculina. Ao fundo, na porta, surgem duas mulheres, a da direita com uma criança no colo. As mulheres estão trajando vestidos longos e véus escuros e a criança está envolta em panos claros. Toda a cena se mantém em foco.
O oitavo plano mostra o homem, caminhando em uma estrada com muros de pedras em cada lado, sem calçamento, irregular, em plano geral, Ao lado direito da tela, há arvores secas, com céu um pouco nublado, misturando-se no horizonte com a paisagem terrestre. Corte seco para o próximo plano
No nono plano o enquadramento volta ser de close da mulher, posicionada à esquerda, com expressão triste, aparecendo em segundo plano, desfocadas, as outras duas mulheres e crianças no mesmo espaço do sétimo plano. A mulher imóvel abaixa um pouco a cabeça, fecha os olhos e reabre os olhos. Corte seco para o próximo plano.
Câmara subjetiva mostrando homem caminhando na mesma estrada, ouvem-se ruídos de aves e dos passos do homem. Corte seco encerra o décimo plano. Décimo primeiro plano enquadra o rosto da mulher em big close. Movimentos leves dos olhos que ficam semicerrados enquanto ouvem-se passos. Expressão triste. Corte seco. Big close mostra a cabeça do homem por trás tendo à sua frente uma vila de casas claras em uma colina. Homem se move para a frente e o décimo segundo plano encerra em corte seco.
O décimo terceiro plano começa com uma panorâmica, da esquerda para a direita, mostrando uma vila de casas claras na colina. Ouvem-se ruídos de vozes e metais. Cavalos parados e pessoas caminhando em várias direções. Sons de martelo em bigorna. Panorâmica, em plano sequência, volta para a direita e apresenta grupo de oito meninos brincando e um menino maior, vestido em roupas claras, compridas observando os demais, em plano geral. Vozes das crianças. Corte seco para próximo plano.
O décimo quarto plano começa com enquadramento de close do homem mostrando parte superior do tronco e cabeça, tendo ao fundo uma casa da vila. Câmara acompanha seu movimento para a direita, mantendo enquadramento de close, enquanto este se apoia em pedra e se abaixa recostando a cabeça em pano um pouco escuro sobre a pedra. Vozes das crianças. Homem adormece. Vozes da crianças. Corte seco para décimo quinto plano: crianças brincando em plano geral, falam e gesticulam. Corte seco para décimo sexto plano: homem adormecido com cabeça recostado e sons de martelo em bigorna. Corte seco para décimo sétimo plano: crianças brincando. Corte seco para décimo oitavo plano: close de braço e cabeça de homem recostado na pedra. Ruído das crianças, martelada, silêncio. Homem acorda e abre olhos com expressão de susto. Corte seco.
No décimo nono plano, em plano geral surge uma personagem em roupa clara, cabelos cacheados e compridos, que se dirige ao homem dizendo: José. Corte seco para vigésimo plano: close do rosto da personagem de cabelos cacheados que fala: filho de Davi, não tenha receio de receber Maria tua esposa. Ao fundo vê-se casas na colina. Corte seco. O vigésimo primeiro plano enquadra José em close de ombros e cabeça. Em off, ouve-se a outra personagem: porque o que concebeu é obra do espírito santo, Dará luz a um menino que dará o nome de Jesus, porque salvará de seus pecados a seu povo. Leve sorriso no rosto de José. Corte seco.
Zoom-in no vigésimo segundo plano mostra a casa de Maria ao som de música sacra. Corte seco para vigésimo terceiro plano: José caminhando em direção à casa de Maria, plano geral e voz em off: uma virgem grávida. Corte para vigésimo terceiro plano: câmara na mão segue, em close das costas e cabeça, José caminhando em direção à casa de Maria. Voz em off: dará a luz a um filho, dar-lhe-ão o nome Emanuel que significa Deus com os outros. Corte seco.
O vigésimo quarto plano enquadra Maria em plano geral à porta de sua casa. Mesmos objetos de cena dos planos iniciais. Música cantada. Corte seco. Close de Maria de frente no vigésimo quinto plano. Música continua. Corte seco. Plano geral de José entrando no quintal da casa pelas escadas no vigésimo sexto plano. Som de passos. José para e olha para Maria. Corte seco. Os próximos três planos alternam com cortes secos, closes de Maria e José com leve sorriso nos rostos. Sons de pássaros. Corte seco para próxima sequência.
A sequência analisada, visualmente muito bela, sempre utilizando luz natural, demonstra o uso que Pasolini faz de planos em close e planos gerais, articulados com sons e músicas que acentuam a expressividade dos atores. A sequência é um exemplo do que pode ser o cinema-poesia conforme as ideias de Buñuel e Pasolini. Complexo de definir enquanto conceito, mas facilmente reconhecível quando visto!

REFERÊNCIAS

ALBANESE, C. A obra de Pasolini. Letras, n. 30, p. 17-38, 1981.
BUÑUEL, L. Cinema: instrumento de poesia. In: XAVIER, I. (org.) A experiência do cinema: antologia. Rio de Janeiro: Edições Graal: EMBRAFILME, 1983, p. 333-337.
PASOLINI, P. P. O cinema de poesia. In: Pasolini, P. P. Empirismo Herege. Lisboa: Assirio e Alvin, 1982. PEREIRA, M. Um olhar sobre o cinema de Pasolini. ALCEU, v.5, n.9, p. 14-26, 2004.