sábado, 28 de agosto de 2021

A volta ao mundo do cinema brasileiro em 80 filmes 14: Nao por acaso de Philippe Barcinski

Ontem estava, no começo da noite, sem saber o que fazer. Sexta-feira, assistia a um canal de notícias. Notícias repetidas com comentários repetitivos. A cada hora mudavam os comentaristas. Mas, não o teor e tom dos comentários.
Zapeei, então pelos canais. Em busca de coisa melhor para assistir. Poderia ler, mas a cabeça não estava inclinada para isso. Ao acaso, em um deles, vi que "Não por acaso", filme brasileiro começaria em cinco minutos. Pressionei o botão vermelho do controle remoto que revelou informações sobre o filme. Após ler a breve sinopse, me lembrei que já assistira ao filme. Pouco me lembrava do enredo. Mas, na memória me veio a emoção das sequências finais do filme. Decidi revê-lo. Edra me acompanhou.
A tensão constante entre o acaso e o intencionado faz parte da trama do filme. Entre a precisão dos traçados da vida e suas surpresas inesperadas, decorre a vida das personagens. Da diferença entre o plano precisamente deliberado e a emergência do imprevisto surge a demanda de decisões não previamente pensadas. Um eterno conflito entre o desejo de controle total e sua impossibilidade.
É um filme belíssimo em que se nota a precisão da direção e do roteiro. Nada é por acaso no filme de 2007 dirigido e roteirizado por Philippe Barcinski e com belas atuações de Leonardo Medeiros, Letícia Sabatela, Rodrigo Santoro, Cassia Kiss, entre outros.
O filme é magistralmente construído e fotografado. Um todo composto por um emaranhado de sentimentos que surgem a partir de encontros, desencontros, partidas e descobertas que têm como cenário principal as ruas de São Paulo e suas inúmeras esquinas. Junto com os personagens passeei por São Paulo e revi locais em que já estive nas minhas passagens por lá.
É justamente em uma dessas ruas que se revela um flash back contado sem nenhuma chance do espectador ou da espectadora antecipar sua natureza. Depois de uma narrativa em que conhecemos a história e a trama em que está envolvido Ênio, personagem central interpretado por Leonardo Medeiros, surge um casal vivido por Rodrigo Santoro e Branca Messina, Pedro e Teresa. Uma sequência de apresentação de personagens e nova trama. Assim como Ênio, Pedro se revela obcecado por controle.
Mas, qual a ligação com a trama anterior? Me indagava. Apesar de ter assistido ao filme anteriormente, nada me ocorria. De repente, um acidente em uma das ruas, triste acaso, liga as personagens. E, não por acaso, mas por escolha do diretor e roteirista, esta conexão nos foi apresentada na forma de insuspeito flash back. Brilhante montagem!
No começo da noite de uma sexta-feira, por escolha própria, com o domínio do controle remoto, percorri canais em que sabia poder encontrar algo que me interessasse. Por acaso, surgiu este filme no momento certo. Muito melhor do que ver os comentaristas diversos com seus comentários, nada por acaso, repetitivos. Nesse grande filme, mais uma vez, senti a força da tensão entre o planejado e o emergente. O controle e sua falta. E dessa força me surgiu a dúvida: ao se completar "Não por acaso", no corte final, o que estava no roteiro e o que foi fruto do acaso durante as filmagens? Afinal, o plano do roteiro sempre colide com os acasos da filmagem.
Ficha técnica:
Não Por Acaso
2007
Diretor e roteirista: Philippe Barcinski
Música composta por: Ed Côrtes
Elenco: Rodrigo Santoro (Pedro); Letícia Sabatella (Lúcia); Leonardo Medeiros (Ênio);
Branca Messina lTeresa); Rita Batata (Bia); Cássia Kis (Iolanda); Graziella Moretto (Mônica).

segunda-feira, 5 de julho de 2021

Meus estudos no campo do cinema

Comecei este blog, anos atrás, quando estava fazendo uma especialização em cinema. Além das reflexões que as disciplinas me inspiravam, publiquei muitos textos e informações sobre o campo do audiovisual no Brasil e fora dele. Nos últimos meses, este blog ficou meio abandonado. Mas, meus estudos no campo continuaram. Neste post, relaciono os artigos que publiquei, em conjunto com alguns colegas ou de forma isolada ao longo dos últimos seis anos.

O primeiro artigo, escrito em parceria com Daniela Torres da Rocha e Fabiano Luiz Xavier dos Santos foi "Vinte anos da retomada: dinâmica da concentração da produção e distribuição do filme brasileiro no mercado nacional". No artigo descrevemos a dinâmica da concentração da produção e distribuição de filmes no mercado cinematográfico brasileiro entre 1995 e 2014. Publicado na Revista EPTIC em 2015, pode ser acessado em (https://seer.ufs.br/index.php/eptic/article/view/4311/pdf).

Em 2016, uma reflexão sobre a pouca atenção dada ao mercado cinematográfico brasileiro pelos pesquisadores de estudos organizacionais foi publicado na Revista Interdisciplinar de Marketing. Sob o título "O mercado cinematográfico brasileiro: um campo pouco explorado pelos estudos organizacionais", o artigo pode ser acessado em https://periodicos.uem.br/ojs/index.php/rimar/article/view/26422.

No mesmo ano, em coautoria com Marcos Wagner da Fonseca, foi publicado " Evolução de público e renda nas salas de cinema no Brasil nos últimos sete anos". em um contexto de transformações no mercado exibidor, utilizamos dados disponíveis no site da ANCINE para apresentar a evolução do mercado exibidor brasileiro. O artigo está em http://www.relici.org.br/index.php/relici/article/view/97/118.

Em 2017, juntando meus estudos no campo do empreendedorismo ao interesse mais recente no cinema, junto com Daniela Torres da Rocha, apresentamos o caso de uma empresa nascente de produção audiovisual com sede em Curitiba, iniciativa de dois jovens. A publicação foi no International Journal of Innovation e teve como título: "Imagística: a case of youth entrepreneurship in a small film production firm". O texto integral do artigo se encontra em: https://periodicos.uninove.br/innovation/article/view/9814.

Em 2018, foram publicados mais dois artigos fruto de meus estudos no campo. Ainda em coautoria com Daniela Torres da Rocha, e a participação de Leandro Rodrigo Canto Bonfim e Michael William Citadin, mapemos e analisamos as interações sociais na produção e distribuição cinematográfica no Brasil, apresentando as relações em rede como forma de gestão dos atores econômicos atuantes na indústria brasileira de cinema. O artigo, publicado na Intercom: Revista Brasileira de Ciências da Comunicação, está disponível em https://www.scielo.br/j/interc/a/n9j9xndQWYTRvB73nWwkF8m/?lang=pt. O segundo artigo de 2018, teve a presença de Daniela Torres da Rocha como coautora mais uma vez.  Neste texto, analisamos as diferentes formas de atuação no mercado de codistribuição de filmes brasileiros entre 2009 e 2015. Publicado na Revista Galáxia, com o título "A presença do filme nacional nas salas de cinema do Brasil: um estudo sobre a codistribuição", o acesso ao texto se dá por este link: https://www.scielo.br/j/gal/a/8m95x4YJr7VgY9xPvK6zGSS/?lang=pt&format=pdf.

Por fim, em 2020 e 2021, publiquei mais dois estudos na Revista Livre de Cinema. Em ambos trato do tema da presença da mulher na atividade cinematográfica brasileira. No primeiro -  Fazer cinema no Brasil: a visão de diretoras brasileiras, tratei de aspectos da presença de mulheres na direção de filmes no mercado de cinema brasileiro, em termos de número de filmes, público e distribuição. Ainda, no mesmo artigo, apontei os temas que revelam o olhar feminino sobre a direção de cinema no Brasil. Acesso em http://relici.org.br/index.php/relici/article/view/313. O segundo, publicado ontem, trata de assunto correlato, em que apresento uma revisão de artigos brasileiros que investigaram a representação social das mulheres em filmes nacionais ou a sua representatividade na produção cinematográfica brasileira. Este tem por título "Representação e representatividade: estudos sobre a presença das mulheres na cinematografia brasileira" e está disponível em http://relici.org.br/index.php/relici/article/view/349.

Enfim, nesta trajetória acadêmica vou me (re)construindo, com temas que, às vezes, parecem tão distantes, mas com um olhar mais aproximado se descobre que não estão tão separados assim, Afinal, o cinema foi sempre um meio que me ajudou a fazer sentido desse mundo em que vivemos. E, meus estudos no campo do cinema, são apenas parte dessa tentativa de compreensão. 


 



segunda-feira, 2 de novembro de 2020

A volta ao mundo do cinema brasileiro em 80 filmes 13: Amélia de Ana Carolina

Ontem comecei a assistir Amélia, filme da cineasta Ana Carolina lançado em 2000. Conforme consta na Enciclopédia Itaú Cultural, este foi o quarto longa-metragem de Ana Carolina que foi roteirizado e dirigido por ela. É um filme que me causou um certo estranhamento. Na trama há três mulheres que vivem em um sítio no interior de Minas Gerais e, após receberem carta de Amélia, irmã de duas delas, vão para o Rio de Janeiro ao encontro dela que se afastara das irmãs há muitos anos. No Rio de Janeiro, elas se encontram com a trupe de Sarah Bernhardt, a atriz francesa, com a qual Amélia trabalhava. Falado em francês e português, além do castelhano, o filme é uma batalha cultural! O filme mistura ficção com realidade, pois, de fato, Sarah Bernhardt esteve no Brasil em 1886, 1893 e 1905 (Amaral, 2019).

Devido a problemas de conexão com a internet, deixei para terminar de ver o filme, disponível na Looke hoje pela manhã. Não planejara escrever este post, apesar de ter me divertido muito com o filme. Além disso, o filme continuou me causando o estranhamento mencionado no parágrafo anterior. Uma mistura de teatro, poesia e cinema!

Para minha surpresa, no meio da tarde, enquanto lia um livro recém adquirido (Mulheres atrás das câmeras – as cineastas brasileiras de 1930 a 2018), organizado por Luiza Lusvarghi e Camila Vieira da Silva, encontrei uma referência a frase em que Ana Carolina comentou sobre o seu interesse em “fazer filmes esquisitíssimos, extraordinários, inteligentíssimos”. Esta frase, encontrei no capítulo de Karla Holanda (Documentários (e afins) feitos por elas - um painel) que integra o livro acima. Por sua vez, Karla Holanda comenta que a afirmação de Ana Carolina foi encontrada em Literatura não é documento de Ana Cristina Cesar, publicação da Funarte de 1980.

A partir dessa frase de Ana Carolina, Amélia fez todo o sentido para mim. Dessa forma, parti em busca de informações sobre o filme em outros textos. Eis o que encontrei:

Amélia se situa num contexto do cinema brasileiro da década de 1990 marcado por um retorno da questão nacional e política articulada às estratégias alegóricas herdadas do Cinema Novo. Num momento em que o debate sobre a globalização é tema recorrente na imprensa e nos meios intelectuais, e em que o país encontra-se em um processo de modernização, o filme expõe as contradições do arranjo mundial repondo suas determinações históricas. Retorna a discussão sobre a construção da identidade brasileira se dar sempre numa relação paradoxal com modelos exteriores que são fontes, ao mesmo tempo, de inspiração e estranhamento. O encontro do "mundo rural decadente de Minas Gerais (esse símbolo da riqueza nacional espoliada, representado pelas duas irmãs e a empregada)" com o universo de Sarah Bernhardt resulta na desavença, mas também na revelação de uma interdependência. Enquanto as duas irmãs insistem em reivindicar a suposta herança de Amélia que ainda não receberam, uma série de pequenas negociações e pactos temporários se tece entre elas e a atriz. Há, entre a francesa e as brasileiras, uma metáfora da relação entre colonizadores e colonizados (Enciclopédia Itaú Cultural - http://enciclopedia.itaucultural.org.br/obra67318/amelia).

Por outro lado, em artigo de Erika Amaral (2019), há uma análise do filme de Ana Carolina, que começa apontando para a intermidialidade do filme presente na combinação do teatro de Sarah Bernhardt e a poesia de Gonçalves Dias. Por meio desta intermidialidade, de fato, Amaral (2019, p. 9-10) ao comentar o uso que Ana Carolina faz do poema I-Juca Pirama no filme, afirma que

A escolha deste poema como elemento de protagonismo das sequências finais de Amélia aponta, em certa medida, para esta reputação como símbolo da identidade nacional. As questões de nacionalismo e indianismo suscitadas pela poesia romântica brasileira são fundamentais para a análise da intermidialidade no filme de Ana Carolina.

Mais à frente, a mesma autora sugere que “a presença da arte teatral no filme de Ana Carolina revela possíveis contaminações interculturais que se desenvolvem ao longo da narrativa, mas que evoluem em meio a confrontos” (p. 11).

Em suma, apesar do estranhamento, Amélia é um filme que o acaso quis que entrasse nessa minha viagem pelo mundo do cinema brasileiro.

Dados do filme:

Direção: Ana Carolina

Roteiro: Ana Carolina e José Antônio Pinheiro

Elenco principal: Marília Pêra (Amélia); Béatrice Agenin (Sarah Bernardt); Camila Amado (Oswalda); Alice Borges (Maria Luiza); Betty Gofman (Vicentine); Xuxa Lopes (Atriz Perdida); Duda Mamberti (Lano); Myrian Muniz (Francisca)

Fotografia: Rodolfo Sánchez

Referências:

AMÉLIA . In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileiras. São Paulo: Itaú Cultural, 2020. Disponível em: <http://enciclopedia.itaucultural.org.br/obra67318/amelia>. Acesso em: 02 de Nov. 2020. Verbete da Enciclopédia. ISBN: 978-85-7979-060-7

AMARAL, Erika “Meu canto de morte, guerreiros, ouvi”: intermidialidade e tensões do colonialismo em Amélia (2000). Aniki Revista Portuguesa da Imagem em Movimento, v. 6, n. 2, p. 3-24, 2019,

HOLANDA, Kátia Documentários (e afins) feitos por elas. In: Luiza Lusvarghi e Camila Vieira da Silva Orgs.) Mulheres atrás das câmeras: as cineastas brasileiras de 1930 a 2018. São Paulo: Estação Liberdade, 2019.

domingo, 27 de setembro de 2020

A volta ao mundo do cinema brasileiro em 80 filmes 12: Bacurau de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dorneles

Este texto foi lido no “Seminário Educação Filófica VI: cinema como formação e educação estética” realizado pelo Núcleo de Estudos sobre Ensino de Filosofia e Educação Filosófica da UFPR (NESEF) e sob a coordenação do Professor Geraldo Balduino. A seção contou com a participação de membros do Cineclube Jogo de Cena e aconteceu no dia 25/09/2020. O debate foi sobre o filme Bacurau, em diálogo com Deus e o Diabo na Terra do Sol. Além de minha fala inciial, teve a interlocução de Douglas Lopes e Alessandro Reina, ambos do NESEF e do cineclube.

Comecei minha fala com algumas informações sobre o filme e seus diretores. Bacurau é uma coprodução franco-brasileira que estreou em 2019, e conseguiu superar a marca de 700 mil espectadores nas salas de cinema brasileiro. Este resultado o colocou na oitava posição entre os filmes brasileiros de maior público nas salas de cinema em 2019. Por falar nisso, que saudade de ver um filme nos cinemas!

É o quarto longa metragem de Kleber Mendonça Filho e o primeiro de Juliano Dorneles. Ambos são integrantes da safra de cineastas de Pernambuco que tem ajudado a diminuir a concentração de produção de filmes brasileiros no eixo Rio-São Paulo. É, também, o segundo filme brasileiro a ser premiado no certame geral do Festival de Cannes. O primeiro foi O Pagador de Promessas, de Anselmo Duarte em 1962.

Kleber Mendonça Filho foi o diretor, também de dois filmes brasileiros muito bem recebidos pela crítica e com algum sucesso de público nas salas de cinema: Aquarius (2016) com 356 mil espectadores e O som ao redor (2013) com pouco mais de 95 mil espectadores. Juliano Dorneles atuou na direção de arte de O som ao redor e na produção de arte de Aquarius e de Cinema, Aspirinas e Urubus. Este último foi dirigido por Marcelo Gomes e lançado nos cinemas em 2005. Cinema, Aspirinas e Urubus foi o primeiro sucesso do cinema pernambucano no século XXI e atingiu a marca de 105 mil espectadores. Entre 2005 e 2018, foram lançados pouco mais de 50 longas produzidos em Pernambuco. Enquanto isto, no Paraná, nós tivemos 27 filmes lançados no mesmo período. Mas, isto não importa aqui.

Bacurau compartilha, em minha percepção, com muitos filmes dessa produção contemporânea pernambucana, algumas qualidades técnicas. Entre estas destaco, uma produção acurada, a boa direção de arte, uso de trilhas musicais muito bem escolhidas e a qualidade de som acima da média do cinema brasileiro. Em Bacurau, em particular, as filmagens noturnas e as panorâmicas são muito bem feitas. É uma estética bem executada. Um filme que faz pensar e, ao mesmo tempo, agrada visualmente. Algo comum em muitos dos filmes pernambucanos contemporâneos. Uma tentativa de conciliar arte e indústria. Por sinal, quem assistiu aos créditos finais do filme, deve ter notado a observação de que a produção do filme gerou 800 empregos. Um alerta sobre a importância do setor de audiovisual para a economia brasileira.

Agora minhas impressões ao assistir, pela segunda vez, o filme. Imediatamente me veio à lembrança, uma questão que me ocorreu quando o assisti primeiramente em uma sala de cinema no ano passado. Poderia eu usar um oximoro para classificar Bacurau? Seria Bacurau uma distopia utópica? Essa junção de opostos, tese e antítese que resultam em um sentimento desconfortável de esperança amarga que a música de Geraldo Vandré acentua.

Ao mesmo tempo em que se parece com uma distopia, com ficção científica, o filme usa da estética dos faroestes de Hollywood. Muitas panorâmicas amplas da paisagem do agreste nordestino. O filme foi filmado no povoado da Barra, e nos distritos de Parelhadas e Acari, interior do Rio Grande do Norte. Do faroeste também, é a repetição da história de um grupo de homens e mulheres que se preparam para enfrentar o ataque de um bando de malfeitores.

Futurismo e faroeste. Seria Bacurau um Blade Runner caboclo, no qual, ao invés dos replicantes, são os nativos que devem ser aniquilados? Ou é Bacurau que deve deixar de existir? Simbolicamente, esse extermínio começa quando Bacurau já não está mais no mapa! No roteiro do filme, é um professor com os alunos que primeiro descobrem que Bacurau não está no mapa da internet, nem mesmo é encontrado por satélite. Algo estranho acontece no vilarejo.

Bacurau se inicia em uma região indeterminada no oeste de Pernambuco, em algum tempo do futuro. Água parecer ser o principal problema da região, nada diferente de nosso mundo contemporâneo (Aliás, quem diria que em Curitiba estaríamos passando por uma crise hídrica em 2020?). As imagens iniciais, após um passeio pelo espaço que nos traz até a Terra, mostram uma mulher e um homem em um caminhão passando por um acidente envolvendo o transporte de caixões funerários. Além do acidente e dos caixões, chama a atenção a má condição da estrada. Toda esburacada. Sinto uma estranheza inicial que aparecerá em outras cenas do filme. Ao mesmo tempo, me parece um futuro não muito distante e tão parecido com o presente!

Me chamou a atenção também, no trajeto pela estrada, uma escola abandonada. Representaria o descaso pela Educação tão dominante no país? Essa sensação seria acentuada pela cena do caminhão basculante despejando uma grande quantidade de livros em frente a outra  escola no vilarejo.

Assim, como a água, a morte será tema central no filme. Ao chegar a Bacurau, o vilarejo parece deserto. Somente uma mulher se mostra em uma janela e cumprimenta a outra que chega. Depois descobrimos que a população estava toda no velório de Carmelita. No discurso do filho de Carmelita e professor da escola local, ao se despedir do corpo da mãe, aprendemos sobre esta figura central do povoado e sobre um valor fundamental: a honestidade. Entre seus descendentes, diz o professor, há de tudo, mas nenhum é ladrão!

Me sugeriu um contraponto ao que está por vir na figura do prefeito local. O vilarejo se fará de deserto novamente quando a visita do prefeito é anunciada por um sistema de alerta criado pela própria população do local. Em campanha para reeleição, este se aproxima com mantimentos (vencidos), remédios, livros e caixões funerários. São donativos para a população que só reaparece quando este está de partida.

Em determinado momento, um disco voador. Na verdade um drone disfarçado. Instrumento de forasteiros, que se julgam os únicos brancos, e que disputam um jogo sobre quem mata mais. A primeira matança ocorreu em um sítio afastado do vilarejo. Quando descoberta, é pedida a ajuda de Lunga, um cangaceiro contemporâneo, que ajuda a cidade a se preparar e resistir.  Pela terceira vez a população deixa o vilarejo com ar deserto enquanto os forasteiros se aproximam.

A população, liderada por Lunga, vence os forasteiros. O prefeito reaparece, descobre-se sua ligação com os forasteiros e o filme se encerra com o prefeito sendo punido e o líder dos forasteiros sendo enterrado vivo.

A violência também é marca forte de Bacurau. Seja a violência explicitada por tiros e sangue manchando roupas. Seja a violência mais sútil, de um político levando uma jovem moradora de Bacurau para uma viagem, onde fica implícito o abuso sexual, apesar dos protestos e ameaças de moradores. Para Rodrigo Nunes, em comentário sobre Bacurau publicado em El Pais (06/10/2019), o filme explora um gênero cultivado por Tarantino e Robert Rodriguez, que ele descreve como filme B de fantasia de vingança coletiva. A violência, assim, se fará presente também na reação da população. Nada mais filme B do que o drone disfarçado de disco viador. Este disco voador me levou à infância, nos primeiros tempos da televisão em Londrina, quando assistia as aventuras de National Kid, série japonesa de ficção científica que os mais jovens provavelmente nunca ouviram falar.

A exposição das cabeças degoladas dos forasteiros rememora momento histórico do cangaço brasileiro. Relembra o conflito entre autoridades constituídas e marginais rebeldes da história dos cangaceiros. Ao mesmo tempo, nos faz pensar na oposição milícia versus governo no Brasil atual.

Essas representações me sugerem que, talvez, o filme pudesse ser metaforicamente visto como um retrato sintético da sociedade brasileira contemporânea. Oposição entre um sul/sudeste opulento e um norte/nordeste miserável. A subserviência da classe dominante a interesses externos, ao mesmo tempo em que se beneficia de arranjos comerciais que acentuam a desigualdade. Ainda, uma tensão entre o saber científico e o saber popular, representados por Domingas e Carmelita que, juntas, exercem papel relevante no enfrentamento da ameaça que vem de fora.

Aliás, essa interpretação que faço do filme ressoa a de Rodrigo Nunes que afirmou: “A violência que o filme vinga, passada, presente e futura, é aquela que existe nas fronteiras do capitalismo e do Estado. É a violência a que estão expostos aqueles que, sem nunca serem incluídos por completo nem nos serviços públicos nem no mercado, podem a qualquer momento se tornar objetos do poder político ou do interesse econômico. É a violência que ronda os “involuntários da pátria”, na expressão certeira de Eduardo Viveiros de Castro: indígenas acossados pela fronteira extrativa, camponeses cercados por posseiros e jagunços, favelados ameaçados pela especulação imobiliária, pela polícia, pela milícia. É a violência através da qual o sistema capitalista se expande e se defende; aquela que se manifesta na busca por mão-de-obra e natureza baratas, nos processos de acumulação primitiva e na gestão das populações “excedentes” (leia-se: desprovidas de funcionalidade econômica). Esta violência não é uma metáfora; ela está acontecendo neste exato momento em alguma terra indígena, periferia ou fronteira que, de um ponto mais central das redes que dela se alimentam, nós não vemos ou preferimos não ver”.

De igual maneira, Alexandre Palma, Monique Ribeiro de Assis e Murilo Mariano Vilaça se inspiraram no filme para “refletir sobre nossos problemas socioeconômicos, políticos e culturais” em texto publicado na revista Praxis. Para estes autores, o filme inspira uma reflexão “sobre a retirada de direitos, violência, enfraquecimento do sistema público de saúde, agressão ao meio ambiente, entre outros aspectos”.

Enfim, concluo que Bacurau é mesmo uma distopia utópica. Os momentos finais do filme dão aquela sensação amarga de esperança, que sabemos não se concretizará.

Ficha técnica (Fonte IMDB)

Direção e roteiro: Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles

Elenco: Bárbara Colen (Teresa); Thomas Aquino (Pacote/Acácio); Silvero Pereira (Lunga); Thardelly Lima (Tony Jr.); Rubens Santos   (Erivaldo); Wilson Rabelo (Plinio); Carlos Francisco (Damiano); Luciana Souza (Isa); Karine Teles (Forasteira); Antonio Saboia    (Forasteiro); Sônia Braga (Domingas); Udo Kier (Michael); Buda Lira (Claudio); Clebia Sousa         (Angela); Danny Barbosa (Darlene); Edilson Silva  (Robson); Eduarda Samara (Madalena); Fabiola Liper (Nelinha); Ingrid Trigueiro (Daisy); Jamila Facury (Sandra); Black Jr. (DJ Urso); Márcio Fecher (Flavio); Rodger Rogério (Carranca); Suzy Lopes (Luciene); Uirá dos Reis (Bidê); Val Junior (Maciel); Valmir do Côco (Raolino); Zoraide Coleto (Madame); Jonny Mars (         Terry); Alli Willow (Kate); James Turpin            (Jake); Julia Marie Peterson (Julia); Brian Townes (Joshua); Charles Hodges (Bob); Chris Doubek (Willy); Lia de Itamaracá (Carmelita).

Música: Mateus Alves e Tomaz Alves Souza         

Cinematografia: Pedro Sotero

Edição: Eduardo Serrano     

Referências:

Nunes, Rodrigo Guimarães "Bacurau" não é sobre o presente, mas o futuro. El País, 06/10/2019, disponível em https://brasil.elpais.com/brasil/2019/10/05/cultura/1570306373_739263.html.

Palma, Alexandre; Assis, Monique Ribeiro de; Vilaça, Murilo Mariano Bacurau: uma metáfora do Brasil atual. Revista Praxis, v. 11, n. 22, p. 31-36, 2019.


sábado, 22 de agosto de 2020

A volta ao mundo do cinema brasileiro em 80 filmes 11: Vera de Sergio Toledo

Na retomada desta viagem, começo com Vera, filme de 1986 dirigido por Sergio Toledo, que também assinou como Sergio Segall em outros filmes que escreveu e dirigiu antes deste (A força do sexo Braços cruzados, Máquinas Paradas). Em Vera, Sergio Toledo narra a história, supostamente ficcional, de Vera Bauer, interpretada por Ana Beatriz Nogueira, órfã que morava em uma instituição social para acolhimento de menores, que ao completar 18 anos tem que sair do abrigo. Ela é acolhida por um professor, Paulo (Raul Cortez), que lhe consegue emprego em uma instituição que parece ser um centro cultural. No entanto Vera prefere ser chamada de Bauer pois se considera um homem. 

A sinopse disponível no site Adoro Cinema assim apresenta o filme: "Uma menina luta para encontrar seu lugar num mundo cada vez mais complexo e hostil. Órfã, passa a adolescência num internato onde, aos poucos, começa a desenvolver uma personalidade masculina e a se impor às outras meninas. Aos dezoito anos, sai do internato e, com a ajuda de um professor, consegue arranjar emprego e começar a vida. No trabalho, conhece Clara (Aida Leiner) e tenta se aproximar dela. As duas se tornam amigas e Vera (Ana Beatriz Nogueira) radicaliza seu comportamento, tentando convencer Clara de que é um homem, vestindo-se e comportando-se como tal" (http://www.adorocinema.com/filmes/filme-204460/).

A paleta de cores escolhida para o filme é predominantemente baseada nas cores frias, em especial o azul, o que lhe dá um aspecto sombrio. Além disso, muitas cenas foram realizadas em condições de baixa luminosidade acentuando esse caráter sombrio do filme que, em minha opinião, se ajusta ao conflito de identidade por que passa a personagem central da trama, bem como me induziu a perceber uma potencial impossibilidade de final feliz para a história.

Apesar de em alguns momentos haver uma certa lentidão na narrativa, o filme flui bem, se alternando entre momentos da vida fora do abrigo (presente) com flashbacks da vida no abrigo. Esse ir e vir entre tempos distintos ajuda na percepção da forma como, com o decorrer do tempo, Vera se afasta do gênero feminino para se afirmar cada vez mais como homem, assumindo inclusive traços do estereótipo do homem forte e dominador do sexo oposto. Curiosamente, a montagem fez uso de reproduções de filmagens sobre lançamentos de foguetes e conflitos bélicos, que foram intercaladas com as cenas de passado e presente da história que é contada. Seriam representações do estereótipo masculino também?

Beatriz Muffo e Caio Marchi, em texto de 2015, sintetizam na análise da última cena, que não vou contar aqui para evitar um spoiler, que esta "parece exteriorizar para os espectadores um pouco de seu conflito interno (da personagem), fundamentado pela angústia de que por mais que subverta as percepções de gênero e reivindique sua identidade masculina, existe a possibilidade de ser constantemente subjugada e que o seu sexo, ou biologia, sejam sempre considerados o seu “destino”, ou seja, que esteja sempre presa no gênero que seu corpo presume" (p. 13).

Quanto ao suposto caráter ficional do filme, embora este seja afirmado na abertura do filme, Marcus Rogério Salgado, em texto de 2016, informa que este  foi baseado na vida  e  no livro A queda para o alto, que considera obra pioneira de autor transexual (Sandra Mara Herzer, que adotou o  nome social  de  Anderson  Herzer). No entanto, este é um mero detalhe que não afeta a qualidade do filme de Sergio Toledo.

Referências:

MUFFO, Beatriz ; MARCHI, Caio (2015) Representação do Transexual no filme brasileiro “Vera”, XXXVIII Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação. Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação, Rio de Janeiro, RJ, 4 a 7/9/2015.

SALGADO, Marcus Rogério (2016) Do silêncio à vertigem: a escrita autobiográfica de Herzer, Jangada: Colatina/Chicago, n. 8, jul-dez, p. 5-21.

quinta-feira, 30 de abril de 2020

A PRESENÇA DA MULHER NA DIREÇÃO DO CINEMA BRASILEIRO CONTEMPORÂNEO - PARTE 4

Ontem assisti a mais um episódio da série de documentários Cineastas de Hermes Leal que é apresentada no canal Curta!. O episódio foi dedicado à trajetória de Lúcia Murat, com quem tive um primeiro contato em maio de 2013, quando assisti a sua palestra em Curitiba, à época do lançamento de seu filme Memórias que me contam.

A palestra de Lúcia Murat me inspirou uma reflexão sobre a atividade empreendedora. Esta reflexão surgiu quando ela comparou dois momentos de sua vida profissional que assim retratei em um post no meu blog sobre empreendedorismo e gestão de pequenas empresas:

O trabalho na rede de televisão, marcado por uma escala de massa, de produção industrial, era um espaço pouco propício à expressão própria da cineasta. Não havia muita liberdade para a experimentação, para o fazer filme enquanto arte ou poesia. Por outro lado, ao assumir o desafio de viver de sua arte, Lúcia Murat encontrou o espaço para sua expressão como artista, onde pode contar histórias da forma que julga mais adequada (veja o post completo em https://3es2ps.blogspot.com/2013/05/a-pequena-empresa-como-espaco.html).

Em sua fala, naquele dia, percebi a possibilidade da ação empreendedora ser realizada como a construção de um espaço expressivo das pessoas que empreendem. Um manifesto de uma visão de mundo que se materializa em atos empreendedores. Foi um momento muito inspirador para mim.

O documentário de ontem, além da própria Lúcia Murat, traz depoimentos de sua filha Júlia Murat, também cineasta, e de atrizes e atores que participaram de seus filmes: Irene Ravache, Caio Blat, Caco Ciocler e Marisa Orth. Na sinopse do documentário, a obra de Lúcia Murat é denominada cinema-guerrilha, visto que muitos de seus filmes foram inspirados por sua vida como militante à época da ditadura militar nos anos 60.

Mais do que um cinema-guerrilha, no entanto, para mim, o documentário revelou que os filmes de Lúcia Murat parecem exibir, de uma forma quase onipresente, os conflitos e convivências de mundos opostos. Seus filmes, para mim, evidenciam a complexidade de nosso mundo contemporâneo, em especial da sociedade brasileira retratada neles.

Essa percepção me inspirou a escrever este texto, que integra uma série de posts em que falo sobre a presença da mulher na direção do cinema brasileiro contemporâneo. Nos posts anteriores, abordei aspectos estatísticos dessa presença. Mas, neste post a intenção é falar do lado qualitativo dessa presença.

Minha visão de mundo sempre tenta complementar a compreensão que os números me dão de determinado fenômeno com dimensões que não posso traduzir em quantidades e, que, em certo sentido, permitem uma apreensão qualitativa desse fenômeno. É no conflito e na complementariedade dessas visões que consigo avançar nos estudos do que gosto. Aliás, assim como na trajetória fílmica de Lúcia Murat, meu espaço expressivo enquanto pesquisador tenta representar conflitos e convivências de mundos que parecem opostos na construção de um conhecimento, que, no entanto, são complementares.

Assim, para construir essa dimensão qualitativa da presença da mulher na direção do cinema brasileiro contemporâneo, busquei um livro de Lúcia Nagib, estudiosa brasileira do campo dos Estudos em Cinema cujo título é O Cinema da Retomada: Depoimentos de 90 cineastas dos anos 90. O período compreendido neste livro vai de 1994 a 1998. Entre os 90 cineastas que estão presentes nesse livro, há relatos de 17 mulheres. Mais uma evidência da pequena quantidade de mulheres nesse campo do cinema brasileiro. Entre estas, há o relato de Lúcia Murat. Mas, o que nos dizem essas mulheres? Vamos lá.

Sigo a ordem da apresentação dos depoimentos que consta no livro (alfabética por sobrenome). Esses depoimentos, conforme alerta Lúcia Nagib no capítulo de apresentação do livro, foram construídos a partir de questões colocadas a todas e todos os entrevistados, cujo tom deveria ser “como entendo o ato de fazer cinema” (p. 21).

A primeira, Tata Amaral (Márcia Lellis de Souza Amaral), que à época do livro, havia realizado, em 1997, Um céu de Estrela, reflete sobre sua experiência como militante anti-ditadura e os esforços de estudo que sua formação como militante demandou. Assim, aponta uma questão importante na prática da realização cinematográfica:

Estimulou-me a ter método, disciplina, algo que uso muito no cinema. Desde muito cedo, aprendi na prática a trabalhar com projeção, análise, balanço, coisa que em cinema também usamos muito. Para fazer um filme é preciso uma estratégia, um planejamento econômico (p. 42, grifo meu).

Eliane Caffé (Eliane Dias Alves), ao final de seu depoimento, aborda uma questão que julgo central para o entendimento das dificuldades enfrentadas pelo cinema brasileiro, seja ele feito por mulheres ou homens, Ela tratava da questão da falta de uma política mais ampla de estímulo à produção cinematográfica no Brasil e, comentando sobre seu primeiro longa, de 1998, diz:

Kenoma é exemplo de um problema que vivemos hoje em dia no Brasil – e o cinema europeu também vive isso  –, que é a questão da distribuição e exibição. O filme foi distribuído pela Riofilme, lançado com três cópias, em São Paulo, Rio e Belo Horizonte. É uma loucura! São R$ 1,7 milhão investidos num filme, eu passo três, quatro anos trabalhando, e o filme é lançado com três cópias num território enorme como o do Brasil. É quase como enterrá-lo num cemitério! E isso é uma contradição. Na medida em que tivemos a retomada da produção, a questão da exibição tornou-se muito mais problemática e urgente (p. 136, grifos meus).

Carla Camurati (Carla de Andrade Camurati), cujo filme Carlota Joaquina, princesa do Brasil (1995) é um dos símbolos da retomada do cinema brasileiro nos anos 90 do século passado, chama a atenção para o fazer coletivo dessa arte/indústria: “o legal do fazer cinematográfico é exatamente o envolvimento e a cumplicidade de um grupo com relação a um tema, É claro que, quando se dirige, é preciso, como a palavra diz, direcionar a equipe. Mas a efervescência desse fazer está no trabalho conjunto” (p. 147, grifo meu).

Na fala de Monique Gardenberg, outra dimensão significativa do trabalho no cinema brasileiro é salientada. Para ela, no Brasil, “é saudável que o cineasta tenha uma segunda profissão, porque é muito difícil fazer cinema. Como não quero mudar de país, procuro outras atividades, como fazer videoclipes... Cada um deve criar uma filosofia de produção compatível com a sua pessoa, senão vem a amargura” (p. 219, grifo meu).

O depoimento de Bia Lessa (Beatriz Ferreira Lessa) surge no livro junto com o de Dany Roland (David Roland Pinto), visto que codirigiram Crede-mi (1997). A prática da codireção, como os dados que tenho analisado recentemente indicam, é comum no cinema brasileiro. Todavia, talvez devido até mesmo à majoritária presença de homens na profissão, o mais comum é codireção de dois ou mais homens. No período que analisei, foram 155 codireções masculinas, apenas dez codireções femininas e 93 codireções mistas, em um conjunto de 1.895 filmes. Um aspecto no depoimento de Bia Lessa que me chamou a atenção foi sobre a incerteza de se chegar a uma história fílmica, em especial na realização de documentários. A dificuldade da montagem, parte fundamental do fazer fílmico, pode ser angustiante, mas também prazerosa. Ela conta:

Na hora da montagem do filme, não sabíamos se ia dar uma história ou não. Mas daí houve um fato decisivo, que foi aquele velhinho do começo do filme... ele me perguntou por onde começar. Eu disse: “Pelo princípio”. Então ele começou a recitar o Gênesis: “Quando Deus criou o céu e a terra”... Daí quando a gente foi montar o filme, e queríamos saber por onde começar, a resposta foi essa: do princípio... Daí transformou-se num exercício de montagem delicioso, e podíamos jogar fora o que era óbvio (p. 262-263, grifo meu).

No depoimento de Mirella Martinelli que, à época tinha feito, em codireção com Eduardo Caron, Terra do Mar (1997), surge a dimensão do sucesso/fracasso em relação às expectativas criadas no processo de realizar um filme. Em especial, de como essa dimensão, seja como fracasso ou sucesso, pode ser multifacetada, envolvendo desde questões quantitativas (público e renda, por exemplo) até a recepção do filme, seja pela crítica ou pelos espectadores:

... quando se faz cinema, é sempre aquela expectativa de glamour, de sucesso, prêmios, festivais, tudo isso que, no fim, é uma grande ilusão... Já sabíamos que não ia ser de grande público, por ser um documentário... Mas tivemos uma ótima resposta de público. Não fomos aceitos na grande maioria dos festivais, mas das pessoas que viram, muitas vieram procurar a gente para dizer como ficaram relaxadas, harmoniosas, como se sentiam bem assistindo o filme (p. 291-292, grifos meus).

Para Susana Moraes (Susana de Mello Moraes), diretora de Mil e uma (1995), o interesse maior está centrado na forma de contar histórias e, não propriamente, na história em si (p. 311). Nesse sentido, ela ao comentar a política de fomento à implantação de uma indústria de cinema no Brasil, argumenta que “quanto maior a produção de filmes, maior o espaço para se fazer um cinema que me interessa mais, com experimentalismo, num caminho mais autoral. O cinema é uma individualidade, a ambição de um autor...” (p. 311, grifo meu).
Mara Mourão (Mara Matilde Cardoso Mourão) percebe a função do cineasta como multifacetada. Refletindo sobre sua trajetória, logo após a produção de Alô! (1998),seu primeiro longa, ela comentava sobre sua vida muito relacionada às artes em geral, gostando de tudo um pouco. Em seu depoimento ela diz que “o cineasta é isso, um pequeno maestro que tem um pouco de dom para tudo, mas não tem um dom específico. O cineasta é uma pessoa multifacetada, principalmente aqui no Brasil, onde tem que ser além de tudo, captador de recursos e entender de finanças para tocar seu filme (p. 318, grifos meus).

Quando fez seu depoimento, Lúcia Murat (Lúcia Murat Vasconcelos) já tinha uma história de dois longas e dois curtas. Doces Poderes (1996) é seu filme da Retomada, no entanto, em 1989 ela já tinha lançado Que bom te ver viva. Em meu levantamento da produção de longas brasileiros exibidos nas salas de cinema, Lúcia Murat é a cineasta que mais teve filmes lançados entre 1995 e 2019. Foram dez filmes desde 1996, sendo o mais recente Praça Paris de 2018. No depoimento de Lúcia Murat escolhi um tema que ela comenta também no documentário que assisti ontem. É sobre a formação para o cinema e a contribuição do movimento cineclubista. Ela comentava sobre sua relação com o cinema, e como esta foi se transformando ao longo de sua vida. Assim se expressa a cineasta:

Já na adolescência, foi a experiência do conhecimento. Nos anos 60, imperava o grande cinema, o Cinema Novo, a Nouvelle Vague. Pertenci à chamada “geração Paissandu”, o nome do cinema onde passavam todos esses filmes. Para nós, o cinema era uma maneira não apenas de conhecer o mundo, mas também de refletir sobre esse mundo. Não íamos ao cinema apenas para assistir ao filme, mas também para discutir o filme, o que fazíamos na saída. Havia também outros cineclubes onde isso se dava (p. 322, grifos meus).

Fabrízia Alves Pinto (Fabrízia Gontijo Alves Pinto), ao contrário de Lùcia Murat, estava iniciando sua trajetória no mundo cinema, à época da Retomada. Em 1998, lançou Menino Maluquinho 2, a aventura. Ela vinha de uma trajetória de assistente de direção e coreógrafa em publicidade, e teve a oportunidade de fazer o longa de autoria de seu pai, Ziraldo, antes de dirigir filmes na publicidade. Em sua fala surge a questão da identidade de cineasta, bem como a relação com a publicidade:

Não me chamaria ainda de cineasta. É muito cedo; você faz um longa e já é cineasta? Ainda estou em processo de aprendizagem. Encaro a publicidade como uma faculdade de cinema. Cada vez que faço um comercial, faço cinema. Acho, contudo, que não tenho os vícios e maneirismos da publicidade, por ter começado ao avesso (p. 347, grifo meu).

Na fala de Monica Schmiedt, cuja participação na Retomada se deu com o filme Antártida, o último continente (1997), surge a questão da autoformação como cineasta e a junção com a função de produção. Originária do Rio Grande do Sul, seu depoimento também incorpora uma questão regional:

Toda essa geração que faz cinema no Rio Grande do Sul nesta última década é autodidata. Eu também. Aprendi cinema fazendo... Nunca fiz faculdade ou qualquer curso, embora tivesse gostado de fazer.
Não sou essencialmente diretora, mas produtora, eis minha grande paixão. Sempre gostei de viabilizar projetos, não só de realizar projetos de outros diretores que vêm a mim para produzirmos juntos um filme, mas viabilizar ideias próprias. Essa é a vantagem do produtor que é também diretor: ele pode ter ideias (p. 444, grifos meus).

Helena Solberg (Maria Helena Collett Solberg) tem, também, uma trajetória longa no cinema brasileiro, com filmes exibidos desde começo da década de 70. Em 1995, ela participa da Retomada com Carmen Miranda, bananas is my business. Em seu depoimento, ela trata da fronteira entre documentário e ficção, por usar uma mistura dos dois gêneros em seu filme. Assim ela informa:

O filme é o que às vezes chamam de “docu-drama”. Gosto muito dessa fronteira entre o documentário e a ficção, partindo do princípio de que todo filme traduz o ponto de vista de quem está atrás da câmera. Parti para a fantasia de uma Carmen falsa, quase inventada, quase como uma história de tablóide. Tudo isso evidentemente corre ao lado da história da pessoa real que acontece atrás das portas, algo que não pode ser contado e que Carmen na verdade não queria contar nem para si mesma (p. 463, grifos meus).

Para Rosane Svartman, cineasta de Como ser solteiro (1998), à época de seu depoimento (2002), o mercado cinematográfico era competitivo e o produto nacional tinha pouca proteção. Ademais, a experiência de seu filme exemplifica, mais uma vez, a questão do difícil acesso e permanência nas salas de exibição. Em suas palavras: “Como ser solteiro foi lançado junto com Titanic! Sofremos muito com isso. Tivemos um público bacana, mas fomos sempre tirados dos cinema, ainda com média de sala... Se estou fazendo média de sala, de algum jeito tenho que poder ficar na sala” (p. 468, grifo meu). No trecho sublinhado, estava implícita a questão de como regular o mercado exibidor para garantir a entrada e permanência do filme nacional no circuito exibidor.

Na fala de Daniela Thomas (Daniela Gontijo Alves Pinto), há uma avaliação do período denominado Retomada do Cinema Brasileiro que apresenta certo caráter crítico. Seu filme, Terra Estrangeira, codirigido com Walter Salles, integra o conjunto de 14 filmes brasileiros lançados em 1995, marco inicial desse período. Para a cineasta:

...esse renascimento do cinema brasileiro reflete profundamente a vida aqui em todos os seus aspectos políticos e culturais. É um cinema sem escola, um cinema sem nenhum vínculo ideológico, sem nenhuma discussão. É um renascimento quantitativo, ou seja há filmes sendo feitos. Não existe um fórum de debates sobre o cinema. Simplesmentre estamos fazendo filmes, e esse é o nosso único vínculo: estamos geográfica e temporalmente envolvidos (p. 484, grifos meus).

Mais á frente, ela adiciona uma temática à discussão que lembra o debate sobre o domínio de mercado por um tipo de cinema, mais industrial, em detrimento de outras maneiras de fazer filme. Daniela Thomas comenta que “o poder da Globo está tão arraigado que os filmes se tranformaram num subproduto da dramaturgia global” (p. 484). Em oposição a este tipo de filme, ela aponta o que denominou “novo cinema independente”, citando Tata Amaral, Paulo Caldas e Lírio Ferreira, Andrucha Waddington, Cláudio Torrres e Beto Brant (p. 484).

Sandra Werneck (Sandra Werneck Tavares de Souza) e Tizuka Yamasaki são as duas últimas cineastas com depoimentos registrados no livro de Lúcia Nagib. Ambas integram o grupo de cineastas mais experientes, com uma produção significativa de curtas e médias metragens antes de fazerem longas. No caso de Sandra Werneck, ela fez 12 curtas e médias entre 1976 e 1994.  Tizuka Yamasaki, por outro lado, fez seis curtas entre 1974 e 1982, com seu primeiro longa, Gaijn, caminhos da liberdade, em 1980. Sandra Werneck, por outro lado, teve seu primeiro longa exibido em 2001, Amores possíveis. Tizuka Yamazaki teve dois filmes incluídos no período da Retomada conforme a visão de Lúcia Nagib: Fica comigo (1996) e O noviço rebelde (1997).

No período que analisei, Tizuka Yamasaki lançou oito longas nos cinemas brasileiros, e Sandra Werneck conseguiu exibir sete longas, estando entre as quatro mulheres que mais lançaram filmes nas salas de cinema no Brasil. Além de Lúcia Marat que teve depoimento no livro, a quarta cineasta é Cris D’Amato também com sete longas exibidos nos cinemas brasileiros. Esta, no entanto, não integrou o livro de Lúcia Nagib, visto que seu primeiro longa lançado no circuito exibidor é de 2007.

Das duas últimas cineastas, escolhi dois trechos que ajudam nessa compreensão qualitativa do que é fazer cinema sob a perspectiva de mulheres cineastas. Uma trata da questão da sensibilidade para a direção de atores e a outra trata, de novo, da distribuição e exibição. Dois pontos que, coincidentemente, mostram facetas distintas e igualmente importantes no fazer cinematográfico: a sensibilidade para a arte e a necessidade de compreensão do mercado:

Minha trajetória é marcada pelo documentário, sobretudo na área social e política... Essa minha trajetória me ajudou muito na ficção. No documentário, é preciso prestar atenção e registrar o momento da emoção.
Essa capacidade ajuda muito quando se dirige atores (Sandra Werneck, p. 505, grifo meu).

O maior problema que encontramos é a distribuição e a exibição. Não temos uma distribuidora de impacto, que possa competir com os filmes que estamos entrando no mercado. A distribuição da produção cinematográfica brasileira ficou reduzida à Riofilme. O filme brasileiro fica uma semana em cartaz, só para mostrar serviço e sai (Tizuka Yamasaki, p. 515, grifos meus)

Alerto que não abordei o depoimento de Jussara Queiroz apresentado no livro, porque a fala presente no livro é de sua irmã Iara Queiroz, já que à época, a cineasta estava muito doente e impossibilitada de falar. Afinal, um(a) leitor(a) mais atento poderia verificar que reproduzo trechos das falas de 16 cineastas, embora ao início do post tenha  mencionado que são 17 as mulheres presentes no livro de Lúcia Nagib.

Por fim, para concluir este post que se tornou demasiado longo, é difícil resumir as diversidades das falas. O fazer cinema para as mulheres, em meu entender, é fruto de trajetórias de vidas distintas, resultando em olhares e questões peculiares a cada uma delas. No entanto, esse fazer cinematográfico exigiu que estas mulheres lidassem com aspectos artísticos e industriais de seu fazer. Algumas com mais sucesso, outras com menos, mas sempre tentando mostrar histórias por meio de imagens, afinal esta é a essência do cinema.

Referência:

NAGIB, L. O cinema da retomada: depoimentos de 90 cineastas dos anos 90. São Paulo: Editora 34, 2002.

segunda-feira, 13 de abril de 2020

A PRESENÇA DA MULHER NA DIREÇÃO DO CINEMA BRASILEIRO CONTEMPORÂNEO - Parte 3


Nos dois primeiros posts desta série, descrevi a participação das mulheres na direção de filmes brasileiros entre 1995 e 2019. Com base em um conjunto de 1.918 filmes, identifiquei 262 mulheres e 1.023 homens que atuaram no cargo de direção, isoladamente ou em co-direção, dos filmes brasileiros lançados no quarto de século mencionado.
Em termos de quantidade de filmes lançados, foram encontradas apenas quatro mulheres, entre cineastas que lançaram mais de seis filmes neste período, ao passo que os homens foram 27. Ou seja, as mulheres representaram apenas 12,9% desse grupo.
Neste post, abordo a questão do desempenho dos filmes em termos de público alcançado. Entre as inúmeras variáveis que podem ter influência na presença do público em salas de cinema para assistir filmes brasileiros, uma das que pode ser fundamental é a distribuidora dos filmes. Nesses 25 anos, com base nos dados disponíveis, identifiquei a presença de 313 empresas que atuaram neste mercado, cujo público total foi de 353.516.593 espectadores. Este total refere-se a 1.849 filmes, pois para 69 não havia a informação de público. Aliás, já tive a oportunidade de investigar este mercado em três artigos que são referenciados ao final deste post.
A tabela a seguir apresenta as 15 maiores distribuidoras, em termos de público, que, no conjunto, representaram 91,2% do mercado. Para construir esses dados, quando houve codistribuição, o público dos filmes foi distribuído igualmente entre as empresas envolvidas. Assim, quando havia duas empresas, o público foi atribuído metade para cada uma. E, quando foram três, um terço para cada distribuidora. No caso das duas primeiras, Paris e Downtown, há uma forte atuação em codistribuição desde 2012. Essa parceria representou, no período, 29,04% do público dos filmes brasileiros, ou seja, três quartos do mercado alcançados por ambas as empresas (102.672.805 espectadores).
Distribuidoras
Público Total
%
Paris
     69.182.538
19,6
Downtown
     67.663.138
19,1
Fox
     34.740.834
9,8
Columbia
     34.373.387
9,7
Warner
     23.708.340
6,7
Imagem
     22.389.278
6,3
RioFilme
     13.538.815
3,8
Lumiére
     11.948.630
3,4
Zazen
     11.554.013
3,3
Sony
       9.337.786
2,6
Buena Vista
       7.037.341
2,0
Disney
       6.049.870
1,7
H2O Films
       5.697.626
1,6
Europa
       5.201.997
1,5

Entre este 1.849 filmes brasileiros lançados entre 1995 e 2019, em que havia informação sobre distribuidoras e público, 78,5% foram dirigidos ou co-dirigidos por homens. A direção ou co-direção de mulheres foi identificada em 16,1% dos filmes e co-direção mista em 5,4% dos filmes.
Com base nesses números, é possível comparar a presença de filmes dirigidos por mulheres entre os lançados pelas maiores distribuidoras, seja de forma isolada ou em co-distribuição. Esses dados estão representados no gráfico a seguir. Observe-se que no gráfico estão os dados das distribuições isoladas e em co-distribuição.

Como se pode observar, a presença de filmes dirigidos por mulheres entre as distribuidoras de maior público foi de 10,6%. Este valor é 5,5 pontos percentuais menor do que a presença de filmes dirigidos por mulheres no conjunto total.
Por outro lado, estes dados podem, ainda, ser comparados com a participação dos filmes dirigidos por mulheres que tiveram distribuição pelas distribuidoras de participação média no mercado. Para isso, foram escolhidas as distribuidoras que tiveram público total entre 300 mil e 1,5 milhão de espectadores nesse período. No conjunto, as dez distribuidoras representaram 2,4% do mercado total. Estas estão representadas na tabela e gráficos abaixo.
Distribuidoras
Público Total
%
Imovision
1.450.904
0,41
Art Filmes
1.272.822
0,36
UIP
1.137.734
0,32
Pandora
1.061.541
0,30
Copacabana Filmes
823.618
0,23
Elo Company
705.741
0,20
Videofilmes
681.529
0,19
Espaço Filmes
522.555
0,15
Filmes do Estação
492.823
0,14
Mais Filmes
300.108
0,08


Para esse grupo de distribuidoras, se percebe que a participação dos filmes distribuídos por mulheres, no total, chegou a 21,5%. Este percentual é 4,4 pontos percentuais acima da média de todas as distribuidoras que atuaram no mercado.
Mas, o que é que se pode afirmar com estes números?
Os dados indicam claramente que a participação de filmes dirigidos por mulheres é maior nas distribuidoras de médio porte, quando comparadas com as de maior presença no mercado. No entanto, o que esses dados não ajudam a responder é por que as mulheres, já sendo minoria na direção de filmes, encontram essa barreira para terem seus filmes distribuídos pelas maiores empresas do mercado?
No próximo post, quero apresentar informações sobre os filmes e as mulheres que romperam estas barreiras.

Referências

GIMENEZ, F. A. P. A competição na distribuição do cinema brasileiro de 1995 a 2017. Revista Livre de Cinema, v. 6, n. 2, p. 83-93, 2019.

GIMENEZ, F. A. P.; ROCHA, D. T. da A presença do filme nacional nas salas de cinema do Brasil: um estudo sobre a codistribuição. Galáxia, v. 37, p. 94-108, 2018.

ROCHA, D. T. da; BONFIM, L. R. C.; CITADIN, M. W.; GIMENEZ, F. A. P.. Mapeando as relações de coprodução e codistribuição no cinema brasileiro: uma análise pela ótica da teoria de redes. Intercom, v. 41, p. 41-61, 2018.