Há livros que prendem a atenção desde o seu
começo. A atração é tão grande que passo horas lendo, desejando chegar ao seu
final para saber como o texto é concluído. Em geral, isto ocorre quando estou
lendo ficção. No entanto, ontem, ao voltar do cinema, resolvi pegar um dos
livros sobre cinema que trouxe para essa temporada de férias em Londrina. O livro que integra a coleção Debates da
Editora Perspectiva é A Significação no
Cinema de Christian Metz.
Havia me preparado para uma leitura difícil,
talvez pesada, a partir da apresentação que é feita na capa: Este é um livro fundamental e globalizado
para quem se dedica ao estudo e à crítica do cinema, pois investigando a
atividade cinematográfica à luz das conquistas da linguística e da semiologia,
permite compreender a especificidade dos signos cinematográficos no universo da
comunicação...
Neófito nos estudos do cinema tinha
consciência de que estava embarcando em um texto com pouca familiaridade dos
conceitos que nele seriam tratados. Mas, encarei a diversão de férias: aprender
mais um pouco sobre esse campo de conhecimento que me fascina a cada
aproximação. Comprei o livro algum tempo atrás, durante uma estada em São
Paulo. Não me lembro de ter ouvido falar sobre o autor antes de comprá-lo. Fui atraído
pelo título e pela reputação de boa qualidade que têm os livros da coleção Debates.
De certa forma, o título do livro se aproxima
das minhas inquietações de pesquisador no campo do empreendedorismo e da gestão
de pequenas empresas. Nessa área, vivo buscando apreender o significado que
empreendedores e gestores de pequena empresa dão às suas práticas
administrativas, bem como procuro revelar os modelos mentais que são adotados
na formação de estratégia de pequenas empresas. Mais uma conexão possível entre
estes dois campos de conhecimento que estão dividindo minha atenção e tempo
recentemente.
Antes
de falar do livro e de seu conteúdo, senti necessidade de saber quem foi
Christian Metz. Busquei socorro na Wikipédia, creio que para essa coisas biográficas
pode ser uma fonte confiável. Espero não ter me enganado, mas se você leitor,
tiver alguma correção a fazer, por favor, me avise. Pode ser por esse blog
mesmo.
Segundo
as informações da Wikipédia, (http://pt.wikipedia.org/wiki/Christian_Metz), Christian
Metz (12 de setembro de 1931 - 07 de dezembro de 1993)
foi um francês teorizador de filmes, mais conhecido pelo pioneirismo da
aplicação de Ferdinand de Saussure nas teorias da semiologia nos
filmes. Durante a década de 70, sua obra teve um impacto importante sobre a
teoria cinematográfica, na França, na Grã-Bretanha, na América Latina e
nos Estados Unidos.
Pouco
esclarecedor! Cá entre nós, esperava mais da Wikipédia, mas foi o que apareceu.
Na versão espanhola da Wikipédia, há um pouco mais de detalhes (http://es.wikipedia.org/wiki/Christian_Metz):
Christian
Metz (Béziers, 12 de diciembre de 1931 - París, 7
de diciembre de 1993), semiólogo, sociólogo y teórico
cinematográfico francés, reconocido por haber aplicado las teorías de Ferdinand
de Saussure al análisis del lenguaje del cine, así como el concepto lacaniano del estadio
del espejo y otros provenientes del psicoanálisis. Fue profesor de la École
des Hautes Études en Sciences Sociales. Se suicidó en 1993.
A
propósito de sua morte, Sandy Flitterman-Lewis prestou um tributo a Metz no periódico
Discourse, me permitindo conhecer um pouco mais desse estudioso cujo livro me impressionou
de forma marcante. Durante a leitura, percebi um rigor na construção do
discurso, uma capacidade de análise e articulação de ideias e uma competência
na exposição do raciocínio muito raras. Neste tributo aprendi sobre a abordagem
de Metz ao estudo do cinema em três vertentes: a linguística, a psicanalítica e
a socioeconômica. Mas, me chamou a atenção uma citação que Flitterman-Lewis fez
de um trecho do próprio Metz:
É
muito difícil encontrar sua própria abordagem na turbulência da vida intelectual,
especialmente em Paris... Deve-se manter sua própria perspectiva, sem
agressividade estéril, mesmo que esta visão se torne vaga, ou até mesmo
completamente incerta, hesitante. Você deve ser capaz de dizer, ‘Eu não sei’
sem se tornar muito infeliz... A coisa importante é escolher algo que você ame,
para reintroduzir a dimensão do desejo no campo da investigação cientifica.
Uau!
Metz disse isso em uma entrevista em 1975. Me arrepiei quando li esse trecho do
tributo de Flitterman-Lewis. Não foi à toa que li seu livro quase que de forma ininterrupta.
Tive apenas um pequeno intervalo de sono entre as primeiras 170 páginas lidas à
noite de ontem e as outras 120 lidas hoje de manhã. O seu texto revelava, além
de seu rigor científico e discursivo, sua paixão pelo tema.
Enfim, o que dizer sobre o livro?
A significação no Cinema é uma coletânea
originalmente composta por dez textos, que foram publicados na década de 60 por
Metz. Mas, três textos foram condensados em um, o que reduziu a coletânea a
oito textos. Neles, Metz aborda um conjunto de problemas cinematográficos. A
edição original era composta por quatro seções, mas na brasileira, houve um
rearranjo para três seções e os textos 6 e 7 da edição original foram
substituídos por um de autoria de Jean Claude Bernardet, tradutor do livro. Curiosamente,
um erro de revisão, fez com que o texto 8, fosse numerado como 10, que devia
ser seu número na edição francesa. Mas, isso não importa, não é mesmo?
Embora escritos em momentos distintos e
publicados isoladamente, a estrutura da coletânea tem uma organicidade ímpar, passando
a impressão de que os textos são, na verdade, capítulos de uma obra única. A partir
de dois textos que apresentam uma abordagem fenomenológica de filmes narrativos
na primeira seção, Metz evolui para a apresentação de textos que tratam de
problemas de semiologia no cinema na segunda seção. Esta seção é concluída pelo
texto 5, Problemas de Denotação no Filme
de Ficção, no qual foi apresentada a proposta de uma Grande Sintagmática da
Faixa-Imagem com seus oito tipos sintagmáticos. Por fim, a terceira seção é
dedicada à discussão de alguns problemas teóricos do cinema “moderno”: a
narração, a construção em abismo e o dizer e o dito no cinema.
Um anexo completa o livro com dois textos de
Jean Claude Bernadet. O primeiro é o relato da aplicação que Bernadet faz da
Sintagmática proposta por Metz ao analisar São
Paulo Sociedade Anônima de Luís
Sérgio Person (1965). Este texto substituiu uma análise semelhante feita por
Metz do filme Adieu Philippine de
Jacques Rozier. Além disso, Bernadet apresenta ao final um Posfácio no qual
tece considerações e críticas sobre os textos que compõem a coletânea. Uma
leitura essencial, dentro do espírito da coleção Debates, que me permitiu,
leitor neófito do campo aprofundar o entendimento e as limitações, segundo Bernadet,
das proposições teórico-filosóficas de Christian Metz. Aliás, a própria análise
de São Paulo Sociedade Anônima feita por
Bernadet foi ilustrada por comentários do tradutor sobre dificuldades de
aplicação literal dos oito tipos sintagmáticos.
Por fim, dois detalhes do livro que me
chamaram particularmente a atenção.
O primeiro diz respeito à crítica que Metz fez
das conclusões de Kulechov a partir de seu famoso experimento com justaposições
de fotogramas. Este experimento demonstrou, segundo Kulechov, a potencialidade
da montagem como construtora de significado no cinema, o que acabou acarretando
uma forte tradição de seu uso na chamada escola soviética (Pudovkin,
Alexandrov, Dziga-Vertov, Eisenstein, entre outros). Mas, para Metz isso foi
apenas fogo de artifício. Aliás, a visão de Metz é rebatida por Bernadet que
usou a expressão que acabei adaptando no título desse post. Segundo Bernadet, a escola soviética apanha bastante (p.
289) de Metz.
Outro detalhe menor, mas interessante é a
explicação que Metz deu para o surgimento da expressão construção em abismo. No texto 7 da coletânea, A Construção “em abismo” em Oito e Meio de Fellini, Metz introduz
sua análise explicando que essa expressão foi emprestada da linguagem da
ciência heráldica que usa a “construção em abismo” para as situações em que no interior
de um brasão, um segundo brasão reproduz o primeiro em tamanho menor. É o caso
de 8 ½ de Fellini que Metz descreve como pertencendo à categoria das obras de artes desdobradas, refletidas em si mesma
(p. 217). Um filme dentro de um filme no caso de 8 ½.
Impressionado com essa primeira leitura de
Metz, análoga a um mergulho, mas de pouca profundidade, próximo à superfície
para rapidamente voltar ao contato com o ar caso me faltasse fôlego, fui em
busca de outros textos no Google Acadêmio. Acabei encontrando um publicado por
Metz em 1985 no periódico October, Photography
and Fetish. Um legítmo representante da aplicação da psicanálise na teoria
do cinema de Metz.
Neste texto, próximo da conclusão, ao
comentar sobre as possibilidades da psicanálise na análise do cinema, Metz
ressalta o seu suposto poder de sugestão, de ativação, de iluminação de outro
campo, fechando com mais um depoimento que, para mim, foi revelador de seu
caráter enquanto estudioso do cinema:
Eu sinto que a psicanálise tem este poder nos campos das
humanidades e ciências sociais porque é uma descoberta forte e profunda. Ela me
ajudou – o coeficiente pessoal de cada pesquisador sempre entra em
consideração, apesar das declarações rituais da impessoalidade da ciência –
para explorar um dos muitos caminhos possíveis através do problema complexo da
relação entre cinema e fotografia. Eu usei, em outras palavras, a teoria do
fetichismo como um fetiche (p. 89).
Esse Metz deve ter sido uma grande figura!
Nessa altura, continuei a busca por mais textos
de Metz. Encontrei mais um no qual ele reconsidera algumas ideias sobre a
conotação e sua relação com a denotação na construção de significados do
cinema.
Mas, nesse momento, tive que voltar à tona.
Meu fôlego acabou!
Fica a dica para você leitor, cujo fôlego
permitiu chegar até aqui nesse post um pouco extenso demais. As referências
seguem abaixo.
METZ, Christian A Significação no Cinema. São Paulo: Peerspectiva, 2012.
METZ, Christian Connotation
Reconsidered. Discourse, v. 2, p.
18-31, 1980.
METZ, Christian
Photography and Fetish. October¸v. 34,
p. 81-90, 1985.
FLITTERMAN-LEWIS,
SandyTribute to Christian Metz, Discourse,
v. 16, n. 3, p. 3-5, 1994.