quarta-feira, 31 de dezembro de 2014

Cinema: Arte & Indústria

Encerrando o ano com uma leitura altamente inspiradora. Uma coletânea de textos de Anatol Rosenfeld, organizada por J. Guinsburg e Nanci Fernandes, com introdução de Nanci Fernandes e Arthur Autran.

Anatol Rosenfeld foi professor de Estética da Escola de Arte Dramática da USP em 1962. Eis uma breve descrição de seu histórico no Brasil, encontrado em http://biblioteca.folha.com.br/1/18/1995012202.html:

"Anatol Rosenfeld fez parte de um importante grupo de intelectuais judeus que deixaram a Europa durante o nazismo, estabelecendo-se no Brasil. Nascido na Alemanha em 1912, estudou filosofia na Universidade de Berlim entre 1930 e 1934. Em 1936, foge da perseguição nazista aos judeus e, depois de um breve período na Holanda, vem para São Paulo em 1937. Em 1956, começa a assinar a coluna "Letras Germânicas", no "Suplemento Literário" de "O Estado de São Paulo", dirigido pelo crítico Décio de Almeida Prado. Ao lado do austríaco Otto Maria Carpeaux (1900-1978) e do húngaro Paulo Rónai (1907-1992), Rosenfeld transforma-se num dos principais ensaístas do país.  Autor de livros como "Teatro Moderno", "O Mito e o Herói do Teatro Brasileiro" (ambos pela Perspectiva) e "História da Literatura Alemã" (Nova Alexandria), torna-se professor de estética da Escola de Arte Dramática da USP em 1962, morrendo em 1973.  O livro "Thomas Mann" encerra uma série de títulos de Anatol Rosenfeld publicados pelas editoras Perspectiva, Edusp e Editora da Unicamp."

O livro traz textos divido em quatro seções compondo um documento de rico valor como fonte histórica. A partir de uma análise da dupla característica do Cinema enquanto arte e indústria, os textos de Rosenfeld apresentam uma panorâmica da história do cinema entre o seu surgimento no final do ´século XIX até os momentos de crise da segunda guerra-mundial. São textos escritos no começo da década de 50 do século XX, que incluem análises históricas e estéticas. Ademais, na seção Cinema e Inovação, os organizadores agruparam três textos que discutem o surgimento do Cinema em Relevo ou 3D. Na opinião de Rosenfeld, essa inovação tecnológica, que já estava nas gavetas das empresas cinematográficas há muito tempo, só foi efetivada devido à crise que Hollywood enfrentava, tendo sido uma resposta de cunho predominantemente econômico e não estético.

Em vários momentos, Rosenfeld demonstrava, além de uma capacidade de análise crítica e estética impressionantes, um bom humor e senso irônico que tornam a leitura de seus textos ainda mais agradáveis. Nesse sentido, é exemplar o Diálogo sobre os méritos estéticos do cinema em relevo. Este diálogo entre um Adversário e um Entusiasta da inovação que surgia nos anos 50, peça de argumentação extremamente bem construída por Rosenfeld, é recheadao de referências irônicas e bem humoradas. Impagável!

ROSENFELD, ANATOL Cinema:Arte e Indústria. São Paulo: Perspectiva, 2002. 264p.

terça-feira, 23 de dezembro de 2014

CHRISTIAN METZ, O HOMEM QUE SURROU OS SOVIÉTICOS ou MERGULHO RASO NA SIGNIFICAÇÃO NO CINEMA

Há livros que prendem a atenção desde o seu começo. A atração é tão grande que passo horas lendo, desejando chegar ao seu final para saber como o texto é concluído. Em geral, isto ocorre quando estou lendo ficção. No entanto, ontem, ao voltar do cinema, resolvi pegar um dos livros sobre cinema que trouxe para essa temporada de férias em Londrina.  O livro que integra a coleção Debates da Editora Perspectiva é A Significação no Cinema de Christian Metz.

Havia me preparado para uma leitura difícil, talvez pesada, a partir da apresentação que é feita na capa: Este é um livro fundamental e globalizado para quem se dedica ao estudo e à crítica do cinema, pois investigando a atividade cinematográfica à luz das conquistas da linguística e da semiologia, permite compreender a especificidade dos signos cinematográficos no universo da comunicação...

Neófito nos estudos do cinema tinha consciência de que estava embarcando em um texto com pouca familiaridade dos conceitos que nele seriam tratados. Mas, encarei a diversão de férias: aprender mais um pouco sobre esse campo de conhecimento que me fascina a cada aproximação. Comprei o livro algum tempo atrás, durante uma estada em São Paulo. Não me lembro de ter ouvido falar sobre o autor antes de comprá-lo. Fui atraído pelo título e pela reputação de boa qualidade que têm os livros da coleção Debates.

De certa forma, o título do livro se aproxima das minhas inquietações de pesquisador no campo do empreendedorismo e da gestão de pequenas empresas. Nessa área, vivo buscando apreender o significado que empreendedores e gestores de pequena empresa dão às suas práticas administrativas, bem como procuro revelar os modelos mentais que são adotados na formação de estratégia de pequenas empresas. Mais uma conexão possível entre estes dois campos de conhecimento que estão dividindo minha atenção e tempo recentemente.

Antes de falar do livro e de seu conteúdo, senti necessidade de saber quem foi Christian Metz. Busquei socorro na Wikipédia, creio que para essa coisas biográficas pode ser uma fonte confiável. Espero não ter me enganado, mas se você leitor, tiver alguma correção a fazer, por favor, me avise. Pode ser por esse blog mesmo.

Segundo as informações da Wikipédia, (http://pt.wikipedia.org/wiki/Christian_Metz), Christian Metz (12 de setembro de 1931 - 07 de dezembro de 1993) foi um francês teorizador de filmes, mais conhecido pelo pioneirismo da aplicação de Ferdinand de Saussure nas teorias da semiologia nos filmes. Durante a década de 70, sua obra teve um impacto importante sobre a teoria cinematográfica, na França, na Grã-Bretanha, na América Latina e nos Estados Unidos.

Pouco esclarecedor! Cá entre nós, esperava mais da Wikipédia, mas foi o que apareceu. Na versão espanhola da Wikipédia, há um pouco mais de detalhes (http://es.wikipedia.org/wiki/Christian_Metz):

Christian Metz (Béziers, 12 de diciembre de 1931 - París, 7 de diciembre de 1993), semiólogo, sociólogo y teórico cinematográfico francés, reconocido por haber aplicado las teorías de Ferdinand de Saussure al análisis del lenguaje del cine, así como el concepto lacaniano del estadio del espejo y otros provenientes del psicoanálisis. Fue profesor de la École des Hautes Études en Sciences Sociales. Se suicidó en 1993.

A propósito de sua morte, Sandy Flitterman-Lewis prestou um tributo a Metz no periódico Discourse, me permitindo conhecer um pouco mais desse estudioso cujo livro me impressionou de forma marcante. Durante a leitura, percebi um rigor na construção do discurso, uma capacidade de análise e articulação de ideias e uma competência na exposição do raciocínio muito raras. Neste tributo aprendi sobre a abordagem de Metz ao estudo do cinema em três vertentes: a linguística, a psicanalítica e a socioeconômica. Mas, me chamou a atenção uma citação que Flitterman-Lewis fez de um trecho do próprio Metz:

É muito difícil encontrar sua própria abordagem na turbulência da vida intelectual, especialmente em Paris... Deve-se manter sua própria perspectiva, sem agressividade estéril, mesmo que esta visão se torne vaga, ou até mesmo completamente incerta, hesitante. Você deve ser capaz de dizer, ‘Eu não sei’ sem se tornar muito infeliz... A coisa importante é escolher algo que você ame, para reintroduzir a dimensão do desejo no campo da investigação cientifica.

Uau! Metz disse isso em uma entrevista em 1975. Me arrepiei quando li esse trecho do tributo de Flitterman-Lewis. Não foi à toa que li seu livro quase que de forma ininterrupta. Tive apenas um pequeno intervalo de sono entre as primeiras 170 páginas lidas à noite de ontem e as outras 120 lidas hoje de manhã. O seu texto revelava, além de seu rigor científico e discursivo, sua paixão pelo tema.

Enfim, o que dizer sobre o livro?

 A significação no Cinema é uma coletânea originalmente composta por dez textos, que foram publicados na década de 60 por Metz. Mas, três textos foram condensados em um, o que reduziu a coletânea a oito textos. Neles, Metz aborda um conjunto de problemas cinematográficos. A edição original era composta por quatro seções, mas na brasileira, houve um rearranjo para três seções e os textos 6 e 7 da edição original foram substituídos por um de autoria de Jean Claude Bernardet, tradutor do livro. Curiosamente, um erro de revisão, fez com que o texto 8, fosse numerado como 10, que devia ser seu número na edição francesa. Mas, isso não importa, não é mesmo?

Embora escritos em momentos distintos e publicados isoladamente, a estrutura da coletânea tem uma organicidade ímpar, passando a impressão de que os textos são, na verdade, capítulos de uma obra única. A partir de dois textos que apresentam uma abordagem fenomenológica de filmes narrativos na primeira seção, Metz evolui para a apresentação de textos que tratam de problemas de semiologia no cinema na segunda seção. Esta seção é concluída pelo texto 5, Problemas de Denotação no Filme de Ficção, no qual foi apresentada a proposta de uma Grande Sintagmática da Faixa-Imagem com seus oito tipos sintagmáticos. Por fim, a terceira seção é dedicada à discussão de alguns problemas teóricos do cinema “moderno”: a narração, a construção em abismo e o dizer e o dito no cinema.

Um anexo completa o livro com dois textos de Jean Claude Bernadet. O primeiro é o relato da aplicação que Bernadet faz da Sintagmática proposta por Metz ao analisar São Paulo Sociedade Anônima  de Luís Sérgio Person (1965). Este texto substituiu uma análise semelhante feita por Metz do filme Adieu Philippine de Jacques Rozier. Além disso, Bernadet apresenta ao final um Posfácio no qual tece considerações e críticas sobre os textos que compõem a coletânea. Uma leitura essencial, dentro do espírito da coleção Debates, que me permitiu, leitor neófito do campo aprofundar o entendimento e as limitações, segundo Bernadet, das proposições teórico-filosóficas de Christian Metz. Aliás, a própria análise de São Paulo Sociedade Anônima feita por Bernadet foi ilustrada por comentários do tradutor sobre dificuldades de aplicação literal dos oito tipos sintagmáticos.

Por fim, dois detalhes do livro que me chamaram particularmente a atenção.

O primeiro diz respeito à crítica que Metz fez das conclusões de Kulechov a partir de seu famoso experimento com justaposições de fotogramas. Este experimento demonstrou, segundo Kulechov, a potencialidade da montagem como construtora de significado no cinema, o que acabou acarretando uma forte tradição de seu uso na chamada escola soviética (Pudovkin, Alexandrov, Dziga-Vertov, Eisenstein, entre outros). Mas, para Metz isso foi apenas fogo de artifício. Aliás, a visão de Metz é rebatida por Bernadet que usou a expressão que acabei adaptando no título desse post. Segundo Bernadet, a escola soviética apanha bastante (p. 289) de Metz.

Outro detalhe menor, mas interessante é a explicação que Metz deu para o surgimento da expressão construção em abismo. No texto 7 da coletânea, A Construção “em abismo” em Oito e Meio de Fellini, Metz introduz sua análise explicando que essa expressão foi emprestada da linguagem da ciência heráldica que usa a “construção em abismo” para as situações em que no interior de um brasão, um segundo brasão reproduz o primeiro em tamanho menor. É o caso de 8 ½ de Fellini que Metz descreve como pertencendo à categoria das obras de artes desdobradas, refletidas em si mesma (p. 217). Um filme dentro de um filme no caso de 8 ½.

Impressionado com essa primeira leitura de Metz, análoga a um mergulho, mas de pouca profundidade, próximo à superfície para rapidamente voltar ao contato com o ar caso me faltasse fôlego, fui em busca de outros textos no Google Acadêmio. Acabei encontrando um publicado por Metz em 1985 no periódico October, Photography and Fetish. Um legítmo representante da aplicação da psicanálise na teoria do cinema de Metz.

Neste texto, próximo da conclusão, ao comentar sobre as possibilidades da psicanálise na análise do cinema, Metz ressalta o seu suposto poder de sugestão, de ativação, de iluminação de outro campo, fechando com mais um depoimento que, para mim, foi revelador de seu caráter enquanto estudioso do cinema:

Eu sinto que a psicanálise tem este poder nos campos das humanidades e ciências sociais porque é uma descoberta forte e profunda. Ela me ajudou – o coeficiente pessoal de cada pesquisador sempre entra em consideração, apesar das declarações rituais da impessoalidade da ciência – para explorar um dos muitos caminhos possíveis através do problema complexo da relação entre cinema e fotografia. Eu usei, em outras palavras, a teoria do fetichismo como um fetiche (p. 89).

Esse Metz deve ter sido uma grande figura!

Nessa altura, continuei a busca por mais textos de Metz. Encontrei mais um no qual ele reconsidera algumas ideias sobre a conotação e sua relação com a denotação na construção de significados do cinema.

Mas, nesse momento, tive que voltar à tona. Meu fôlego acabou!

Fica a dica para você leitor, cujo fôlego permitiu chegar até aqui nesse post um pouco extenso demais. As referências seguem abaixo.
  
METZ, Christian A Significação no Cinema. São Paulo: Peerspectiva, 2012.

METZ, Christian Connotation Reconsidered. Discourse, v. 2, p. 18-31, 1980.

METZ, Christian Photography and Fetish. October¸v. 34, p. 81-90, 1985.

FLITTERMAN-LEWIS, SandyTribute to Christian Metz, Discourse, v. 16, n. 3, p. 3-5, 1994.