domingo, 27 de outubro de 2013

Encontros com Ismail Xavier iluminados por Laura Mulvey

Minha ida a São Paulo para assistir a alguns filmes da 37a. Mostra Internacional de Cinema foi frutífera. Entre as dezessete horas da sexta-feira, 18/10 até as vinte e duas horas do domingo, 19/10 pude ver nove filmes. Teriam sido dez, não fosse o fato de uma das sessões estar com os ingressos esgotados.

Mas, como dizem, às vezes, o mal vem para o bem. Como não poderia ver o filme que desejava, entrei na Livraria Cultura e fui fuçar na sessão de Cinema. Entre os livros que comprei, comecei a ler de imediato o Encontros/Ismail Xavier. Um livro de entrevistas com Ismail Xavier, organizado por Adilson Mendes, cobrindo um período entre 1980 e  2009. São dez entrevistas, sendo que nove foram publicadas em diversos jornais e revistas e a última foi realizada pelo organizador especialmente para o livro. As dez entrevistas são precedidas por um texto introdutório - Análise de filmes, crítica da sociedade - de autoria de Adilson Mendes. Ao final do livro, uma cronologia da vida de Ismail Xavier é apresentada com os marcos de sua trajetória acadêmica.

Uma leitura densa, mas não pesada! Esta é para mim a melhor definição do conteúdo do livro. Ao longo das entrevistas se pode perceber a consistência na trajetória desse pensador do cinema em termos de método de análise fílmica e de elaboração teórica sobre seu objeto de estudo. Discorrendo sobre o Cinema Novo, Cinema Marginal, Cinema Brasileiro moderno e contemporâneo, mas também tratando do cinema de forma geral, as entrevistas nos dão um amplo panorama do entendimento de Xavier sobre teoria, método e estudos do Cinema. Enfim, uma leitura que nos ajuda a compreender como, nas palavras de Adilson Mendes (p. 11) o empenho crítico de Ismail Xavier escapa ao esquema de uma apresentação, desenvolvendo-se em diferentes frentes complementares. Atento ao equacionamento entre cinema e modernidade, com ênfase na realidade brasileira, o crítico elabora sua obra articulando teoria crítica com experiência histórica determinada.

Para alguém que como eu, no meu caso tardiamente, se incia nos estudos do cinema, há partes do discurso de Ismail Xavier que podem ser tidos como um convite a uma forma de pensar o cinema, por meio da análise do filme. Por exemplo, em entrevista dada a Fernando Morais, Lécio Augusto Ramos, Mariana Baltar Freire e Pedro Plaza Pinto, publicada na Revista Contracampo em 2003, Xavier comenta a tarefa que se colocou de desenvolver a análise de filmes para contrastar com o que considerava um historicismo excessivo. Como o próprio afirmou naquela entrevista (p. 235-236):

O esforço foi então o de apurar a análise formal, pois é na forma que procuro encontrar os nexos entre cinema e sociedade, estética e política... Era preciso testar o alcance e os limites da análise imanente (o que podem dizer as imagens?) e evitar o que acho o pior: ver nos filmes apenas aquilo que os próprios cineastas dizem que está lá, ou apenas aquilo que o elenco de ideias que marcam um movimento estético definem a priori, confundindo intenções ou proclamações ideológicas com a dinâmica efetiva da linguagem...

Este convite a uma forma de estudo do Cinema me foi reforçado, coincidentemente, por outra leitura recomendada pelo Professor José Gatti na disciplina de Teorias do Cinema da Pós-Graduação em Cinema da Universidade Tuiuti do Paraná. É um texto de Laura Mulvey intitulado Prazer Visual e Cinema Narrativo, apresentado pela autora originalmente em 1973 na Universidade de Wisconsin. Integrante da antologia A experiência do Cinema organizada pelo mesmo Ismail Xavier em 1983, nesse texto encontrei uma das mais belas definições do cinema. Segundo Laura Mulvey (p. 452), é o lugar do olhar e a possibilidade de variá-lo e de expô-lo que define o cinema.

Um pouco mais à frente, na mesma página e seguinte, ela refina seu argumento de forma brilhante:

Existem três séries diferentes de olhares associados ao cinema: o da câmera que registra o acontecimento pró-fílmico, o da platéia quando assiste ao produto final, e aquele dos personagens dentro da ilusão da tela. As convenções do filme narrativo rejeitam os dois primeiros, subordinado-os ao terceiro, com o objetivo consciente de eliminar sempre a presença da câmera intrusa e impedir uma consciência distanciada da platéia. Sem essas duas ausências (a existência material do processo de registro e a leitura crítica do espectador), o drama ficcional não atinge o realismo, o óbvio e a verdade.

A leitura e compreensão dessa passagem do texto de Laura Mulvey me proveu de uma clareza solar para finalmente distinguir entre as categorias de transparência e opacidade do discurso de Ismail Xavier.