Este
texto foi lido no “Seminário Educação Filófica VI: cinema como formação e
educação estética” realizado pelo Núcleo de Estudos sobre Ensino de Filosofia e
Educação Filosófica da UFPR (NESEF) e sob a coordenação do Professor Geraldo Balduino. A seção contou com a participação de
membros do Cineclube Jogo de Cena e aconteceu no dia 25/09/2020. O debate foi
sobre o filme Bacurau, em diálogo com Deus e o Diabo na Terra do Sol. Além de
minha fala inciial, teve a interlocução de Douglas Lopes e Alessandro Reina,
ambos do NESEF e do cineclube.
Comecei
minha fala com algumas informações sobre o filme e seus diretores. Bacurau é
uma coprodução franco-brasileira que estreou em 2019, e conseguiu superar a
marca de 700 mil espectadores nas salas de cinema brasileiro. Este resultado o
colocou na oitava posição entre os filmes brasileiros de maior público nas
salas de cinema em 2019. Por falar nisso, que saudade de ver um filme nos
cinemas!
É o
quarto longa metragem de Kleber Mendonça Filho e o primeiro de Juliano
Dorneles. Ambos são integrantes da safra de cineastas de Pernambuco que tem
ajudado a diminuir a concentração de produção de filmes brasileiros no eixo
Rio-São Paulo. É, também, o segundo filme brasileiro a ser premiado no certame
geral do Festival de Cannes. O primeiro foi O Pagador de Promessas, de Anselmo
Duarte em 1962.
Kleber
Mendonça Filho foi o diretor, também de dois filmes brasileiros muito bem
recebidos pela crítica e com algum sucesso de público nas salas de cinema:
Aquarius (2016) com 356 mil espectadores e O som ao redor (2013) com pouco mais
de 95 mil espectadores. Juliano Dorneles atuou na direção de arte de O som ao
redor e na produção de arte de Aquarius e de Cinema, Aspirinas e Urubus. Este
último foi dirigido por Marcelo Gomes e lançado nos cinemas em 2005. Cinema,
Aspirinas e Urubus foi o primeiro sucesso do cinema pernambucano no século XXI
e atingiu a marca de 105 mil espectadores. Entre 2005 e 2018, foram lançados
pouco mais de 50 longas produzidos em Pernambuco. Enquanto isto, no Paraná, nós
tivemos 27 filmes lançados no mesmo período. Mas, isto não importa aqui.
Bacurau
compartilha, em minha percepção, com muitos filmes dessa produção contemporânea
pernambucana, algumas qualidades técnicas. Entre estas destaco, uma produção
acurada, a boa direção de arte, uso de trilhas musicais muito bem escolhidas e
a qualidade de som acima da média do cinema brasileiro. Em Bacurau, em
particular, as filmagens noturnas e as panorâmicas são muito bem feitas. É uma
estética bem executada. Um filme que faz pensar e, ao mesmo tempo, agrada
visualmente. Algo comum em muitos dos filmes pernambucanos contemporâneos. Uma
tentativa de conciliar arte e indústria. Por sinal, quem assistiu aos créditos
finais do filme, deve ter notado a observação de que a produção do filme gerou
800 empregos. Um alerta sobre a importância do setor de audiovisual para a
economia brasileira.
Agora
minhas impressões ao assistir, pela segunda vez, o filme. Imediatamente me veio
à lembrança, uma questão que me ocorreu quando o assisti primeiramente em uma
sala de cinema no ano passado. Poderia eu usar um oximoro para classificar
Bacurau? Seria Bacurau uma distopia utópica? Essa junção de opostos, tese e
antítese que resultam em um sentimento desconfortável de esperança amarga que a
música de Geraldo Vandré acentua.
Ao
mesmo tempo em que se parece com uma distopia, com ficção científica, o filme
usa da estética dos faroestes de Hollywood. Muitas panorâmicas amplas da
paisagem do agreste nordestino. O filme foi filmado no povoado da Barra, e nos
distritos de Parelhadas e Acari, interior do Rio Grande do Norte. Do faroeste
também, é a repetição da história de um grupo de homens e mulheres que se
preparam para enfrentar o ataque de um bando de malfeitores.
Futurismo
e faroeste. Seria Bacurau um Blade Runner caboclo, no qual, ao invés dos replicantes,
são os nativos que devem ser aniquilados? Ou é Bacurau que deve deixar de
existir? Simbolicamente, esse extermínio começa quando Bacurau já não está mais
no mapa! No roteiro do filme, é um professor com os alunos que primeiro
descobrem que Bacurau não está no mapa da internet, nem mesmo é encontrado por
satélite. Algo estranho acontece no vilarejo.
Bacurau
se inicia em uma região indeterminada no oeste de Pernambuco, em algum tempo do
futuro. Água parecer ser o principal problema da região, nada diferente de
nosso mundo contemporâneo (Aliás, quem diria que em Curitiba estaríamos
passando por uma crise hídrica em 2020?). As imagens iniciais, após um passeio
pelo espaço que nos traz até a Terra, mostram uma mulher e um homem em um
caminhão passando por um acidente envolvendo o transporte de caixões
funerários. Além do acidente e dos caixões, chama a atenção a má condição da
estrada. Toda esburacada. Sinto uma estranheza inicial que aparecerá em outras
cenas do filme. Ao mesmo tempo, me parece um futuro não muito distante e tão
parecido com o presente!
Me
chamou a atenção também, no trajeto pela estrada, uma escola abandonada.
Representaria o descaso pela Educação tão dominante no país? Essa sensação
seria acentuada pela cena do caminhão basculante despejando uma grande
quantidade de livros em frente a outra
escola no vilarejo.
Assim,
como a água, a morte será tema central no filme. Ao chegar a Bacurau, o
vilarejo parece deserto. Somente uma mulher se mostra em uma janela e
cumprimenta a outra que chega. Depois descobrimos que a população estava toda
no velório de Carmelita. No discurso do filho de Carmelita e professor da
escola local, ao se despedir do corpo da mãe, aprendemos sobre esta figura
central do povoado e sobre um valor fundamental: a honestidade. Entre seus
descendentes, diz o professor, há de tudo, mas nenhum é ladrão!
Me
sugeriu um contraponto ao que está por vir na figura do prefeito local. O
vilarejo se fará de deserto novamente quando a visita do prefeito é anunciada
por um sistema de alerta criado pela própria população do local. Em campanha
para reeleição, este se aproxima com mantimentos (vencidos), remédios, livros e
caixões funerários. São donativos para a população que só reaparece quando este
está de partida.
Em
determinado momento, um disco voador. Na verdade um drone disfarçado.
Instrumento de forasteiros, que se julgam os únicos brancos, e que disputam um
jogo sobre quem mata mais. A primeira matança ocorreu em um sítio afastado do
vilarejo. Quando descoberta, é pedida a ajuda de Lunga, um cangaceiro
contemporâneo, que ajuda a cidade a se preparar e resistir. Pela terceira vez a população deixa o
vilarejo com ar deserto enquanto os forasteiros se aproximam.
A
população, liderada por Lunga, vence os forasteiros. O prefeito reaparece,
descobre-se sua ligação com os forasteiros e o filme se encerra com o prefeito
sendo punido e o líder dos forasteiros sendo enterrado vivo.
A
violência também é marca forte de Bacurau. Seja a violência explicitada por
tiros e sangue manchando roupas. Seja a violência mais sútil, de um político
levando uma jovem moradora de Bacurau para uma viagem, onde fica implícito o
abuso sexual, apesar dos protestos e ameaças de moradores. Para Rodrigo Nunes,
em comentário sobre Bacurau publicado em El Pais (06/10/2019), o filme explora
um gênero cultivado por Tarantino e Robert Rodriguez, que ele descreve como
filme B de fantasia de vingança coletiva. A violência, assim, se fará presente
também na reação da população. Nada mais filme B do que o drone disfarçado de
disco viador. Este disco voador me levou à infância, nos primeiros tempos da
televisão em Londrina, quando assistia as aventuras de National Kid, série
japonesa de ficção científica que os mais jovens provavelmente nunca ouviram
falar.
A
exposição das cabeças degoladas dos forasteiros rememora momento histórico do
cangaço brasileiro. Relembra o conflito entre autoridades constituídas e
marginais rebeldes da história dos cangaceiros. Ao mesmo tempo, nos faz pensar
na oposição milícia versus governo no Brasil atual.
Essas
representações me sugerem que, talvez, o filme pudesse ser metaforicamente
visto como um retrato sintético da sociedade brasileira contemporânea. Oposição
entre um sul/sudeste opulento e um norte/nordeste miserável. A subserviência da
classe dominante a interesses externos, ao mesmo tempo em que se beneficia de
arranjos comerciais que acentuam a desigualdade. Ainda, uma tensão entre o
saber científico e o saber popular, representados por Domingas e Carmelita que,
juntas, exercem papel relevante no enfrentamento da ameaça que vem de fora.
Aliás,
essa interpretação que faço do filme ressoa a de Rodrigo Nunes que afirmou: “A
violência que o filme vinga, passada, presente e futura, é aquela que existe
nas fronteiras do capitalismo e do Estado. É a violência a que estão expostos
aqueles que, sem nunca serem incluídos por completo nem nos serviços públicos
nem no mercado, podem a qualquer momento se tornar objetos do poder político ou
do interesse econômico. É a violência que ronda os “involuntários da pátria”,
na expressão certeira de Eduardo Viveiros de Castro: indígenas acossados pela
fronteira extrativa, camponeses cercados por posseiros e jagunços, favelados
ameaçados pela especulação imobiliária, pela polícia, pela milícia. É a
violência através da qual o sistema capitalista se expande e se defende; aquela
que se manifesta na busca por mão-de-obra e natureza baratas, nos processos de acumulação
primitiva e na gestão das populações “excedentes” (leia-se: desprovidas de
funcionalidade econômica). Esta violência não é uma metáfora; ela está
acontecendo neste exato momento em alguma terra indígena, periferia ou
fronteira que, de um ponto mais central das redes que dela se alimentam, nós
não vemos ou preferimos não ver”.
De
igual maneira, Alexandre Palma, Monique Ribeiro de Assis e Murilo Mariano
Vilaça se inspiraram no filme para “refletir sobre nossos problemas
socioeconômicos, políticos e culturais” em texto publicado na revista Praxis.
Para estes autores, o filme inspira uma reflexão “sobre a retirada de direitos,
violência, enfraquecimento do sistema público de saúde, agressão ao meio
ambiente, entre outros aspectos”.
Enfim,
concluo que Bacurau é mesmo uma distopia utópica. Os momentos finais do filme
dão aquela sensação amarga de esperança, que sabemos não se concretizará.
Ficha técnica (Fonte IMDB)
Direção
e roteiro: Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles
Elenco: Bárbara Colen (Teresa); Thomas Aquino (Pacote/Acácio); Silvero Pereira (Lunga); Thardelly Lima (Tony Jr.); Rubens Santos (Erivaldo); Wilson Rabelo (Plinio); Carlos Francisco (Damiano); Luciana Souza (Isa); Karine Teles (Forasteira); Antonio Saboia (Forasteiro); Sônia Braga (Domingas); Udo Kier (Michael); Buda Lira (Claudio); Clebia Sousa (Angela); Danny Barbosa (Darlene); Edilson Silva (Robson); Eduarda Samara (Madalena); Fabiola Liper (Nelinha); Ingrid Trigueiro (Daisy); Jamila Facury (Sandra); Black Jr. (DJ Urso); Márcio Fecher (Flavio); Rodger Rogério (Carranca); Suzy Lopes (Luciene); Uirá dos Reis (Bidê); Val Junior (Maciel); Valmir do Côco (Raolino); Zoraide Coleto (Madame); Jonny Mars ( Terry); Alli Willow (Kate); James Turpin (Jake); Julia Marie Peterson (Julia); Brian Townes (Joshua); Charles Hodges (Bob); Chris Doubek (Willy); Lia de Itamaracá (Carmelita).
Música: Mateus Alves e Tomaz Alves Souza
Cinematografia: Pedro Sotero
Edição: Eduardo Serrano
Referências:
Nunes, Rodrigo Guimarães "Bacurau" não é sobre o presente, mas o futuro. El País, 06/10/2019, disponível em https://brasil.elpais.com/brasil/2019/10/05/cultura/1570306373_739263.html.
Palma, Alexandre; Assis, Monique Ribeiro de; Vilaça, Murilo Mariano Bacurau: uma metáfora do Brasil atual. Revista Praxis, v. 11, n. 22, p. 31-36, 2019.