domingo, 27 de setembro de 2020

A volta ao mundo do cinema brasileiro em 80 filmes 12: Bacurau de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dorneles

Este texto foi lido no “Seminário Educação Filófica VI: cinema como formação e educação estética” realizado pelo Núcleo de Estudos sobre Ensino de Filosofia e Educação Filosófica da UFPR (NESEF) e sob a coordenação do Professor Geraldo Balduino. A seção contou com a participação de membros do Cineclube Jogo de Cena e aconteceu no dia 25/09/2020. O debate foi sobre o filme Bacurau, em diálogo com Deus e o Diabo na Terra do Sol. Além de minha fala inciial, teve a interlocução de Douglas Lopes e Alessandro Reina, ambos do NESEF e do cineclube.

Comecei minha fala com algumas informações sobre o filme e seus diretores. Bacurau é uma coprodução franco-brasileira que estreou em 2019, e conseguiu superar a marca de 700 mil espectadores nas salas de cinema brasileiro. Este resultado o colocou na oitava posição entre os filmes brasileiros de maior público nas salas de cinema em 2019. Por falar nisso, que saudade de ver um filme nos cinemas!

É o quarto longa metragem de Kleber Mendonça Filho e o primeiro de Juliano Dorneles. Ambos são integrantes da safra de cineastas de Pernambuco que tem ajudado a diminuir a concentração de produção de filmes brasileiros no eixo Rio-São Paulo. É, também, o segundo filme brasileiro a ser premiado no certame geral do Festival de Cannes. O primeiro foi O Pagador de Promessas, de Anselmo Duarte em 1962.

Kleber Mendonça Filho foi o diretor, também de dois filmes brasileiros muito bem recebidos pela crítica e com algum sucesso de público nas salas de cinema: Aquarius (2016) com 356 mil espectadores e O som ao redor (2013) com pouco mais de 95 mil espectadores. Juliano Dorneles atuou na direção de arte de O som ao redor e na produção de arte de Aquarius e de Cinema, Aspirinas e Urubus. Este último foi dirigido por Marcelo Gomes e lançado nos cinemas em 2005. Cinema, Aspirinas e Urubus foi o primeiro sucesso do cinema pernambucano no século XXI e atingiu a marca de 105 mil espectadores. Entre 2005 e 2018, foram lançados pouco mais de 50 longas produzidos em Pernambuco. Enquanto isto, no Paraná, nós tivemos 27 filmes lançados no mesmo período. Mas, isto não importa aqui.

Bacurau compartilha, em minha percepção, com muitos filmes dessa produção contemporânea pernambucana, algumas qualidades técnicas. Entre estas destaco, uma produção acurada, a boa direção de arte, uso de trilhas musicais muito bem escolhidas e a qualidade de som acima da média do cinema brasileiro. Em Bacurau, em particular, as filmagens noturnas e as panorâmicas são muito bem feitas. É uma estética bem executada. Um filme que faz pensar e, ao mesmo tempo, agrada visualmente. Algo comum em muitos dos filmes pernambucanos contemporâneos. Uma tentativa de conciliar arte e indústria. Por sinal, quem assistiu aos créditos finais do filme, deve ter notado a observação de que a produção do filme gerou 800 empregos. Um alerta sobre a importância do setor de audiovisual para a economia brasileira.

Agora minhas impressões ao assistir, pela segunda vez, o filme. Imediatamente me veio à lembrança, uma questão que me ocorreu quando o assisti primeiramente em uma sala de cinema no ano passado. Poderia eu usar um oximoro para classificar Bacurau? Seria Bacurau uma distopia utópica? Essa junção de opostos, tese e antítese que resultam em um sentimento desconfortável de esperança amarga que a música de Geraldo Vandré acentua.

Ao mesmo tempo em que se parece com uma distopia, com ficção científica, o filme usa da estética dos faroestes de Hollywood. Muitas panorâmicas amplas da paisagem do agreste nordestino. O filme foi filmado no povoado da Barra, e nos distritos de Parelhadas e Acari, interior do Rio Grande do Norte. Do faroeste também, é a repetição da história de um grupo de homens e mulheres que se preparam para enfrentar o ataque de um bando de malfeitores.

Futurismo e faroeste. Seria Bacurau um Blade Runner caboclo, no qual, ao invés dos replicantes, são os nativos que devem ser aniquilados? Ou é Bacurau que deve deixar de existir? Simbolicamente, esse extermínio começa quando Bacurau já não está mais no mapa! No roteiro do filme, é um professor com os alunos que primeiro descobrem que Bacurau não está no mapa da internet, nem mesmo é encontrado por satélite. Algo estranho acontece no vilarejo.

Bacurau se inicia em uma região indeterminada no oeste de Pernambuco, em algum tempo do futuro. Água parecer ser o principal problema da região, nada diferente de nosso mundo contemporâneo (Aliás, quem diria que em Curitiba estaríamos passando por uma crise hídrica em 2020?). As imagens iniciais, após um passeio pelo espaço que nos traz até a Terra, mostram uma mulher e um homem em um caminhão passando por um acidente envolvendo o transporte de caixões funerários. Além do acidente e dos caixões, chama a atenção a má condição da estrada. Toda esburacada. Sinto uma estranheza inicial que aparecerá em outras cenas do filme. Ao mesmo tempo, me parece um futuro não muito distante e tão parecido com o presente!

Me chamou a atenção também, no trajeto pela estrada, uma escola abandonada. Representaria o descaso pela Educação tão dominante no país? Essa sensação seria acentuada pela cena do caminhão basculante despejando uma grande quantidade de livros em frente a outra  escola no vilarejo.

Assim, como a água, a morte será tema central no filme. Ao chegar a Bacurau, o vilarejo parece deserto. Somente uma mulher se mostra em uma janela e cumprimenta a outra que chega. Depois descobrimos que a população estava toda no velório de Carmelita. No discurso do filho de Carmelita e professor da escola local, ao se despedir do corpo da mãe, aprendemos sobre esta figura central do povoado e sobre um valor fundamental: a honestidade. Entre seus descendentes, diz o professor, há de tudo, mas nenhum é ladrão!

Me sugeriu um contraponto ao que está por vir na figura do prefeito local. O vilarejo se fará de deserto novamente quando a visita do prefeito é anunciada por um sistema de alerta criado pela própria população do local. Em campanha para reeleição, este se aproxima com mantimentos (vencidos), remédios, livros e caixões funerários. São donativos para a população que só reaparece quando este está de partida.

Em determinado momento, um disco voador. Na verdade um drone disfarçado. Instrumento de forasteiros, que se julgam os únicos brancos, e que disputam um jogo sobre quem mata mais. A primeira matança ocorreu em um sítio afastado do vilarejo. Quando descoberta, é pedida a ajuda de Lunga, um cangaceiro contemporâneo, que ajuda a cidade a se preparar e resistir.  Pela terceira vez a população deixa o vilarejo com ar deserto enquanto os forasteiros se aproximam.

A população, liderada por Lunga, vence os forasteiros. O prefeito reaparece, descobre-se sua ligação com os forasteiros e o filme se encerra com o prefeito sendo punido e o líder dos forasteiros sendo enterrado vivo.

A violência também é marca forte de Bacurau. Seja a violência explicitada por tiros e sangue manchando roupas. Seja a violência mais sútil, de um político levando uma jovem moradora de Bacurau para uma viagem, onde fica implícito o abuso sexual, apesar dos protestos e ameaças de moradores. Para Rodrigo Nunes, em comentário sobre Bacurau publicado em El Pais (06/10/2019), o filme explora um gênero cultivado por Tarantino e Robert Rodriguez, que ele descreve como filme B de fantasia de vingança coletiva. A violência, assim, se fará presente também na reação da população. Nada mais filme B do que o drone disfarçado de disco viador. Este disco voador me levou à infância, nos primeiros tempos da televisão em Londrina, quando assistia as aventuras de National Kid, série japonesa de ficção científica que os mais jovens provavelmente nunca ouviram falar.

A exposição das cabeças degoladas dos forasteiros rememora momento histórico do cangaço brasileiro. Relembra o conflito entre autoridades constituídas e marginais rebeldes da história dos cangaceiros. Ao mesmo tempo, nos faz pensar na oposição milícia versus governo no Brasil atual.

Essas representações me sugerem que, talvez, o filme pudesse ser metaforicamente visto como um retrato sintético da sociedade brasileira contemporânea. Oposição entre um sul/sudeste opulento e um norte/nordeste miserável. A subserviência da classe dominante a interesses externos, ao mesmo tempo em que se beneficia de arranjos comerciais que acentuam a desigualdade. Ainda, uma tensão entre o saber científico e o saber popular, representados por Domingas e Carmelita que, juntas, exercem papel relevante no enfrentamento da ameaça que vem de fora.

Aliás, essa interpretação que faço do filme ressoa a de Rodrigo Nunes que afirmou: “A violência que o filme vinga, passada, presente e futura, é aquela que existe nas fronteiras do capitalismo e do Estado. É a violência a que estão expostos aqueles que, sem nunca serem incluídos por completo nem nos serviços públicos nem no mercado, podem a qualquer momento se tornar objetos do poder político ou do interesse econômico. É a violência que ronda os “involuntários da pátria”, na expressão certeira de Eduardo Viveiros de Castro: indígenas acossados pela fronteira extrativa, camponeses cercados por posseiros e jagunços, favelados ameaçados pela especulação imobiliária, pela polícia, pela milícia. É a violência através da qual o sistema capitalista se expande e se defende; aquela que se manifesta na busca por mão-de-obra e natureza baratas, nos processos de acumulação primitiva e na gestão das populações “excedentes” (leia-se: desprovidas de funcionalidade econômica). Esta violência não é uma metáfora; ela está acontecendo neste exato momento em alguma terra indígena, periferia ou fronteira que, de um ponto mais central das redes que dela se alimentam, nós não vemos ou preferimos não ver”.

De igual maneira, Alexandre Palma, Monique Ribeiro de Assis e Murilo Mariano Vilaça se inspiraram no filme para “refletir sobre nossos problemas socioeconômicos, políticos e culturais” em texto publicado na revista Praxis. Para estes autores, o filme inspira uma reflexão “sobre a retirada de direitos, violência, enfraquecimento do sistema público de saúde, agressão ao meio ambiente, entre outros aspectos”.

Enfim, concluo que Bacurau é mesmo uma distopia utópica. Os momentos finais do filme dão aquela sensação amarga de esperança, que sabemos não se concretizará.

Ficha técnica (Fonte IMDB)

Direção e roteiro: Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles

Elenco: Bárbara Colen (Teresa); Thomas Aquino (Pacote/Acácio); Silvero Pereira (Lunga); Thardelly Lima (Tony Jr.); Rubens Santos   (Erivaldo); Wilson Rabelo (Plinio); Carlos Francisco (Damiano); Luciana Souza (Isa); Karine Teles (Forasteira); Antonio Saboia    (Forasteiro); Sônia Braga (Domingas); Udo Kier (Michael); Buda Lira (Claudio); Clebia Sousa         (Angela); Danny Barbosa (Darlene); Edilson Silva  (Robson); Eduarda Samara (Madalena); Fabiola Liper (Nelinha); Ingrid Trigueiro (Daisy); Jamila Facury (Sandra); Black Jr. (DJ Urso); Márcio Fecher (Flavio); Rodger Rogério (Carranca); Suzy Lopes (Luciene); Uirá dos Reis (Bidê); Val Junior (Maciel); Valmir do Côco (Raolino); Zoraide Coleto (Madame); Jonny Mars (         Terry); Alli Willow (Kate); James Turpin            (Jake); Julia Marie Peterson (Julia); Brian Townes (Joshua); Charles Hodges (Bob); Chris Doubek (Willy); Lia de Itamaracá (Carmelita).

Música: Mateus Alves e Tomaz Alves Souza         

Cinematografia: Pedro Sotero

Edição: Eduardo Serrano     

Referências:

Nunes, Rodrigo Guimarães "Bacurau" não é sobre o presente, mas o futuro. El País, 06/10/2019, disponível em https://brasil.elpais.com/brasil/2019/10/05/cultura/1570306373_739263.html.

Palma, Alexandre; Assis, Monique Ribeiro de; Vilaça, Murilo Mariano Bacurau: uma metáfora do Brasil atual. Revista Praxis, v. 11, n. 22, p. 31-36, 2019.