domingo, 30 de agosto de 2015

A Volta ao Mundo do Cinema Brasileiro em 80 filmes: 4 - Limite de Mário Peixoto

Encerrando o domingo, acabo de ver em meu computador uma cópia restaurada desse filme lendário de 1931 do qual já ouvira falar, mas achava pouco provável localizá-lo nesse mundo virtual. Dei sorte e encontrei uma restauraçao feita pela Cinemateca Brasileira e Cineteca Bologna concluída em 2010.
Uau! O que dizer dessas quase duas horas de poesia escrita com imagens em movimento? Limite me pareceu um exercício sobre os limites das construções de imagens cinematográficas naquele ano de 1931, Mário Peixoto, seu realizador, usou todos os ângulos possíveis de câmara, todos os enquadramentos possíveis, desde planos gerais até detalhes e closes muito próximos. Também, muitos movimentos de câmaras associados a movimentos de personagens. Fusões e sobreposições. Beleza visual incrível apresentada em um modo completamente distante da narrativa clássica. E a homenagem a Chaplin, nos mostrando a representação de uma sessão de cinema na qual se passava um filme de Carlitos, com direito até a pianista! E as cenas das rodas da locomotiva. Terá sido uma citação da filmagem inaugural do cinema dos irmãos Lumière em 1895?
O filme me pareceu um poema. Poema escrito com imagens muito antes de Buñuel em 1958 e Pasolini em 1965 terem assinalado a possibilidade de um cinema poesia. Mas, esse texto, por enquanto, é apenas o registro inadiável de uma vontade de botar pra fora o que se passou em minha mente quando assistia a Limite. Retornarei a ele outro dia. Preciso saber quem foi esse Mário Peixoto? Que mais fez? O que outros falaram sobre Limite? Será Limite o porto mais longinquo do cinema brasileiro a que chegarei nessa jornada de 80 filmes? Assistir Limite foi quase uma epifânia, quase uma catarse. Esse registro precisava sair de mim, para que o sono pudesse chegar. Retornarei a ele,

A Volta ao Mundo do Cinema Brasileiro em 80 filmes: 3 - Ganga Bruta de Humberto Mauro

Minha primeira reação ao terminar de assistir a esse filme de Humberto Mauro foi: Lindo! Não consegui me conter face ao encanto visual e musical dessa obra prima. Apesar de se tratar de uma versão restaurada pela Cinemateca Brasileira, esse filme de 1933, realizado para a Cinédia de Adhemar Gonzaga, me causou uma impressão forte tanto visualmente quanto em termos sonoros.
Talvez influenciado pela leitura que venho fazendo do livro de Jacques Aumont e Michel Marie – A Análise do Filme – o uso que Humberto Mauro fez de muitos planos detalhes e a articulação entre músicas e espaços cênicos disntintos me chamaram a atenção. A partir de composições de Radamés Gnattali, Humberto Mauro faz uso da música de forma extradiegética compondo diferentes humores visuais e emotivos nos momentos em que o filme se desenrola por espaços tão diversos quanto uma construção, uma igreja, uma taverna, um quarto e jardins, entre outros. São poucas as vezes que a música tem uma função diegética. Em um dos momentos mais marcantes, pelo menos para mim, de Ganga Bruta, ao final do dia, em um grupo de músicos reunidos um deles passa o violão para outro e pede para que ele toque “aquela música de outro mundo”. Essa música vai ser o ponto de partida para um flashback em que Marcos, o protagonista da trama, relembra a tragédia que o fez sair do Rio de Janeiro e ir para Guaraíba supervisionar uma obra de engenharia.
Reproduzo a análise que Lovisi (2010, p. 442) faz do uso da música em Ganga Bruta:
... Ganga Bruta é, em sua maior parte, um filme em que falas e ruídos estão ausentes, o que fez aumentar a importância da trilha musical como ferramenta de auxílio ao drama encenado. No filme de Mauro, a trilha musical aparece em, praticamente, toda a trama e contribuí para a efetivação dos objetivos comunicativos da estória.As composições de Gnattali reafirmam o que é revelado na tela através de uma relação de subordinação da música às imagens. Pelo uso de uma série de recursos musicais herdados principalmente do teatro e da ópera, pode-se compreender parte do processo de criação da obra: cenas tristes recebem música em modo menor, em contraste com o modo maior que aparece em situações alegres, por exemplo. Músicas de andamento ligeiro acompanham cenas de lutas e confusões, numa tentativa constante de ressaltar musicalmente os movimentos físicos das personagens.
No conjunto, em Ganga Bruta se observa a estrutura narrativa clássica dos filmes de Hollywood que havia se tornado um modelo que, já naquela época, se tornava dominante e que segundo Morettin (2007) era o padrão que se via enfatizado na Revista Cinearte e na produtora Cinédia, ambas de propriedade de Adhemar Gonzaga. No entanto, Morettin (2007) argumenta que há nos filmes de Humberto Mauro uma certa resistência ao uso do típico happy end das produções hollywoodianas.

Aliás, nesse mesmo texto Morettin faz uma descrição da trajetória cinematográfica de Humberto Mauro, desde seus primeiros filmes em Cataguases entre 1925 e 1930, primeiro de forma independente e depois para a empresa Phebo Sul America Film, passando em seguida para o período da Cinédia (entre 1930 e 1934), seu longo período como diretor técnico do Instituto Nacional do Cinema, tendo chegado a contribuir em filmes de Nelson Pereira dos Santos e Paulo Cesar Sarraceni nos anos 70 do século passado. Nascido em 1897, veio a falecer em 1983, deixando uma grande produção e reconhecido como “pai” do Cinema Novo por Glauber Rocha (Morettin, 2007, p. 58). Morettin sugeriu que o corpus fílmico que nos legou Humberto Mauro merecia uma análise crítica mais profunda dada a sua diversidade temática e volume de trabalho.
Para mim, conhecer este filme em minha volta ao mundo do cinema brasileiro deixou-me maravilhado em saber que nas raízes do cinema nacional há um Humberto Mauro que Stam e Johnson (1979) qualificaram como o mais importante realizador que surgiu nos anos 20.

Ficha Técnica (retirada de https://www.youtube.com/watch?v=-UHfXmVt1Jk, onde se pode ver o filme)
Observação: Nos crédito do filme Humberto Mauro aparece responsável, também, pela montagem.
GANGA BRUTA, 1933, Rio de Janeiro, RJ.
prd: Adhemar Gonzaga; dir e rot: Humberto Mauro; arg: Octávio Gabus Mendes; fot: Afrodísio de Castro e Edgar Brasil; cam: Paulo Morano; elc: Armando Barreto; crp: Saturnino da Silva; sng: Bechara Jorge; mus: Radamés Gnatalli e Humberto Mauro; clb: Oswaldo Martinez; ext: Ilha das Cobras, RJ; crt: Carlos Eugênio; muf: Ganga bruta, de Heckel Tavares e Joracy Camargo, Teus olhos...água parada, de Radamés Gnatalli, Coco de praia 1 e 2, de Heckel Tavares, todas interpretadas por Moacyr B. Rocha. p&b, 35mm, 85 min, cpr, lab e dis: Cinédia, gen: aventura. 
ELENCO: Durval Belline, Lu Marival, Carlos Eugênio, Déa Selva, Décio Murillo, Andréa Duarte, Alfredo Nunes, Ivan Villar, Francisco Bevilacqua, Renato de Oliveira, João Cardoso, Edson Chagas, Elza Moreno, Mário Moreno, Pery Ribas, Humberto Mauro, Adhemar Gonzaga, Sérgio Barreto Filho, Ayres Cardoso, João Baldi, João Fernandes, Paulo Marra, Olga Silva, Sérgio Barreto, Glória Marina.
SINOPSE: Marcos, rico engenheiro, casa e mata a mulher na noite de núpcias para salvar sua honra. Julgado e perdoado, ele se refugia no interior do país, a pretexto de acompanhar a construção de uma fábrica. Lá encontra Sônia, mocinha alegre e sensual, pela qual se apaixona e, por causa disso, luta contra Décio, o noivo de sua amada. Décio jura vingar-se; Sônia, deflorada por Marcos, suplica a Décio que não o mate. No duelo que se segue, Décio resvala e cai numa cachoeira, afogando-se.

AUMONT, J.; MARIE, M. A Análise do Filme. Lisboa: Edições Texto & Grafia, 2013.

LOVISI, D. M. Radamés Gnattali e a trilha musical no cinema brasileiro. I Simpósio Brasileiro de Pós-Graduandos em Música; XV Colóquio do Programa de Pós-Graduação em Música da UNIRIO (Anais), p. 441-449, Rio de Janeiro, 8 a 10 de novembro de 2010.

MORETTIN, E. Humberto Mauro. Alceu, v. 8, n. 15, p. 48-59, 2007.

STAM, R.; JOHNSON, R. Beyond Cinema Novo. Jump Cut: A Review of Contemporary Media, n. 21, p. 13-18, 1979.

domingo, 9 de agosto de 2015

Andar (n)o mundo procurando belezas

"Andar o mundo procurando belezas". Esta é uma fala de Anita para João no último filme de Jorge Furtado, Real Beleza. Esta frase me impressionou profundamente. Aliás, não é a primeira vez que falas de personagens em filmes assumem um significado especial para mim, inspirando-me alguma reflexão. Só que neste caso, prefiro a frase com um "n" antes de "o mundo". Andar o mundo me passa uma ideia de transitoriedade apressada, apenas passar, sem muito compromisso, a não ser o de realizar uma tarefa. Andar no mundo, ao contrário, significa, ao menos na forma como estou sentindo, o viver no mundo, transitório também, é verdade! Mas, menos apressado, buscando sentir a vida em sua plenitude, com seus altos e baixos, com seus prazeres e dores, com sorrisos e lágrimas... Com um propósito que é muito mais que realizar uma tarefa.
Mas, estou colocando o carro na frente dos bois. Voltemos ao início.
O filme de Jorge Furtado foi lançado no último dia 6. Tive a oportunidade de assistí-lo ontem. A trama, além de Anita e João, envolve Pedro, marido de Anita, e a filha deles, Maria. A sinopse do filme, no Adoro Cinema, conta: "João (Vladimir Brichta) é um fotógrafo decadente, procurando uma nova modelo para relançar a sua carreira. Ele parte para o sul do Brasil, onde fotografa dezenas de adolescentes, até se encantar com a beleza de Maria (Vitória Strada), que deseja transformar em modelo internacional. Mas Pedro (Francisco Cuoco), o pai da garota, se opõe à carreira profissional da filha. Durante uma viagem de Pedro, João tem um caso amoroso com Anita (Adriana Esteves), mãe de Maria." (http://www.adorocinema.com/filmes/filme-224751/). Como toda sinopse, não diz muito, mas serve para revelar parte da trama, preservando o essencial na escuridão. É claro que o filme é mais do que isso!
Fazendo jus ao título, o filme é de uma rara beleza. Há muito não assistia a uma produção brasileira com fotografia tão bela, tanto em interiores quanto exteriores. O roteiro é bem elaborado e conta de forma competente uma trama que envolve conflitos diversos: uma filha adolescente querendo seguir um caminho mais livre; um profissional da fotografia que faz o que não deseja; uma mulher casada com um homem mais velho lutando entre a gratidão e o desejo; o olhar possível e a impossibilidade do olhar...
Tudo isso é narrado por meio de belas imagens usando referências à arte da fotografia e literatura de forma intertextual. Há um diálogo maravilhoso entre Pedro e João, quase ao final do filme, em que um trecho de obra clássica da literatura mundial é usado como uma fala de Pedro. Paro com o spoiler por aqui! O filme me agradou muito. Em alguns momentos, a beleza das imagens era tão intensa que, de forma inusitada para mim, meus olhos marejaram. Cinema cumprindo sua dupla finalidade: entreter e fazer pensar.
A fala de Anita para Jorge, ocorre nos seus primeiros contatos, quando este está lhe dizendo o que faz como fotógrafo. Foi como se um estopim se acendesse e começasse a se queimar em meu cérebro levando a alguma coisa. Na explosão, chego a esse texto.
Mas. como disse, prefiro a forma andar no mundo procurando belezas. Esta fala me fez pensar em minhas andanças no mundo. Não foram tantas quanto eu ainda pretendo, mas já foram algumas. Todas marcantes em algum sentido.
Ao longo de minhas viagens, me habituei a comprar pelo menos um livro da literatura do país que estou visitando. A mais antiga compra de que me lembro foi quando estive em Dublin, há mais de vinte anos atrás. Uma tempestade se avizinhava em minha vida. Não era marítima! Ou seja, não seria na travessia do mar da Irlanda, mas chegaria um dia. Talvez, por isso, a compra desse livro esteja fresca ainda em minha memória. Naqueles dias, comprei em Dublin, o livro Dubliners de James Joyce. Uma coleção de quinze contos publicada em 1914. Mais recentemente, poucos anos atrás, enquanto participava de um congresso em Lima, no aeroporto encontrei na livraria os dois volumes de contos de Julio Ramón Ribeyro intitulados La Palabra del Mudo. Lendo essa coletânea, publicada pela primeira vez em 1973, me emocionei com a histórias contadas por esse escritor peruano. No Brasil, quando estive em Aracaju, pude comprar diversos folhetins de cordel. Uma maneira deliciosa de conhecer a história e o povo de uma localidade.
Em 2015, tive a oportunidade de fazer duas viagens: Montevidéu e Atenas. De cada viagem, além das boas memórias, trouxe um livro. De Montevidéu, mais um livro de contos: Montevideanos de Mario Benedetti. Também, um mestre do texto breve, Benedetti me emocionou com o que li. De Atenas, uma obra prima que estou chegando ao final: Report to Greco de Nikos Kazantzakis. Nessas leituras, encontro algumas belezas dos lugares que visito. Belezas que estão nos livros, estes que são parte da Real Beleza que Jorge Furtado nos trouxe.
Uma coisa me deixou muito incomodado na sala de cinema ontem. Na parte inferior da tela, do lado esquerdo, há um sinal luminoso indicando a saída. Um péssimo local para se preocupar com a segurança da platéia! Muitas vezes, esse sinal luminoso se intrometia nas imagens que eram projetadas. Mas, estava ali indicando um caminho em caso de crise.
Mas, na vida, não temos desses sinais luminosos! Os caminhos são de nossa escolha. Ando no mundo procurando belezas. Seja no cinema, seja na literatura, seja nos estudos da Administração que já fazem parte de minha vida há 38 anos. Tenho encontrado algumas. Felizmente!

sábado, 1 de agosto de 2015

Reflexões Mediterrâneas

Com o calmo deslizar de um navio no retorno de Santorini para Atenas, me ponho a refletir.
Serão oito horas de viagem. Duas já se passaram enquanto nos aproximamos de uma parada em Naxos. Na loja a bordo, encontro apenas livros em grego. Minha busca de leitura para passar o tempo não foi frutífera.
Na memória de meu celular recupero um texto enviado por duas autoras da Bahia para o próximo número da Revista Livre de Cinema. Nele, essas mulheres, que não conheço, relatam impressões sobre um projeto de extensão em que exploraram textos e produção cinematográfica de Marguerite Duras para tratar de sublimação, feminilidade e angústias à luz de Freud e Lacan. Os efeitos da leitura sobre mim são múltiplos.
Surpresa foi a primeira emoção. Não sabia da relação tão íntima de Marguerite Duras con o cinema. Hiroshima, mon amour, filme que assisti décadas atrás, é baseado em livro seu. Além disso, descubro que ela fez filmes baseada em romances seus de forma muito criativa. Preciso assistí-los.
Ao chegar ao final do artigo, uma sensação de perplexidade toma conta de mim. Na minha relação com o feminino descubro, pelas palavras das autoras sobre Lacan, que parece haver um outro gozo além do fálico, que foge à minha compreensão, pois nem pela mulher pode ser explicado. Só pode ser sentido. Mas, tampouco posso explicar meu gozo masculino. Posso apenas sentí-lo. O que mais se aproxima de uma explicação para mim é a forma poética com que na língua francesa alguns denominam o orgasmo: petite mort.
Perplexo também fico ao aprender que não existe o feminino no plural, como na sentença "todas as mulheres são loucas". Cada mulher é única! Mas, de qualquer forma, ser únicas não as impede de ser loucas. Loucura e unicidade podem ser qualidades comuns a cada uma delas. Que as feministas me perdoem essa infame piada!
Junto com a perplexidade, o texto me causou um prazer intelectual muito grande. As autoras, em minha opinião, foram muito hábeis na construção do texto que informa e constrói conhecimento ao mesmo tempo. Além de ser informado sobre romances e filmes de Marguerite Duras dos anos 70, aprendo sobre sublimação, angústia, prazer e a mulher. Aprendo, ainda, sobre como usar o cinema em uma atividade de extensão universitária. Um estímulo a mais para colocar em prática um projeto de extensão envolvendo o cinema brasileiro para discutir a formação e atuação de administradores brasileiros. Venho acalentando esta ideia há algum tempo. Parece estar se aproximando do momento da colheita. Está amadurecendo.
Por fim, me invade um sentimento de realização. Compreendo claramente o que David McClelland, nos anos 60 do século passado, quis dizer quando expressou a ideia de necessidade de realização como algo intrínseco ao ser humano.
Criei a Revista Livre de Cinema no ano passado com o objetivo de construir um espaço virtual de disseminação de estudos e reflexões sobre o cinema. Usei a palavra Livre no titulo com uma dupla intenção. Em primeiro lugar, a ideia era que a Revista Livre de Cinema fosse um espaço onde perspectivas e abordagens de análise do tema fossem as mais diversas possíveis. Em segundo lugar, este espaço seria livre porque todo e qualquer texto submetido à Revista Livre de Cinema será publicado sem avaliação de qualidade por quem quer que seja. O juiz da qualidade de cada texto será o eventual leitor.
Até o momento, consegui publicar cinco edições da Revista LIvre de CInema. No conjunto são 30 textos. Para os primeiros números tive que fazer uma busca ativa de autores e textos. Agora, os textos começam a ser submetidos espontaneamente. Aos poucos, a Revista Livre de Cinema vai se consolidando. O texto que li hoje foi uma grata surpresa para mim. Uma indicação de que o caminho será venturoso. Minha visita ao oráculo de Delfos trouxe uma boa profecia!