domingo, 19 de janeiro de 2014

O Sonho de Pedro

Admirador dos filmes de Buñuel, desde meados do ano passado, tenho procurado por seus filmes para rever ou conhecer pela primeira vez. Nesse final de semana, consegui assitir a dois filmes do chamado período mexicano da produção Buñueliana: A Filha do Engano (1951) e Os Esquecidos (1950). 

Segundo Eduardo Peñuela Cañizal (1993), esse período da obra de Buñuel compreende dezoito filmes realizados entre 1946 e 1965. No livro Um Jato na Contramão: Buñuel no Mèxico, fruto de um curso de extensão ministrado por Cañizal no primeiro semestre de 1992 na Escola de Comunicações e Artes da USP, encontram-se dez ensaios que discutem a obra de Buñuel nesse período. 

Pouco conhecia sobre os filmes de Buñuel no México. A leitura dos ensaios presentes nesse livro despertaram em mim o desejo de ampliar o pouco que havia visto até recentemente: Ensaio de um Crime (1955) e Simão do Deserto (1965). Aliás, à época em que assisti a esse filmes, não sabia da existência de uma obra tão grande no período em que Buñuel viveu no México. Me deliciara com os aspectos surreais de ambos os filmes, assim como de outros filmes de Buñuel que já vira.

Nesse post desejo falar um pouco sobre uma cena do segundo que mostra o sonho de um dos meninos que fazem parte da trama imaginada por Buñuel, a partir da realidade mexicana que vivenciava nos anos 50 do século passado. Ana Maria Balogh em um dos ensaios que compõem o livro organizado por Cañizal assim descreveu a cena;

Nesse sonho, uma galinha cacarejante despenca do teto. Pedro segue a direção de sua queda e depara com Julián, sorridente e ensanguentado debaixo da cama. Sobre eles caem penas de galinha. Pedro volta para a cama e vê sua mãe com uma longa camisola branca, esvoaçante, avançando em direção a ele em câmera lenta, andando no alto sobre as camas, como se fosse uma virgem de Murillo (sobre Murillo ver http://www.sabercultural.com/template/pintores/Murilo1.html, sobre o que se refere Balogh) sobre as nuvens, seu semblante é calmo e afetuoso, ele chega até a cama de Pedro e conversa com ele, o filho lhe pergunta porque não o ama, ela estende a mão para a câmera, como o quadro das mãos que imploram de Siqueiros (ver http://www.citi.pt/cultura/artes_plasticas/desenho/alvaro_cunhal/siqueiros.html)  só que invertidas, para cima, e mostra como estão castigadas do trabalho, depois o abraça ternamente à borda da cama, para, a seguir, afastar-se de costas, esvoaçante, em direção à sua cama, sempre em câmera lenta.


Pedro pergunta à mãe, então, porque ela lhe negou comida. A mãe dá meia volta, e ainda andando esvoaçante em câmera lenta, porém agora mais terrena,  no chão, com uma expressão forte e ambígua, traz um grande pedaço de carne crua para Pedro. Sons de trovões, vento e tempestada permeiam essa parte do sonho. Quando Pedro se prepara para agarrar a carne, a mão de Jaibo (ao que parece) surge do chão (do além?) para arrancá-lo dele que protesta com veemência. O vulto da mãe se afasta, de novo, em câmera lenta, em direção à sua cama, ao fundo do quarto (Balogh, 1993, p. 184 e 185).


Esta cena se inicia com a chegada de Pedro a sua casa tarde da noite. Ele se deita sem que a mãe e seus irmãos o notem, já que estão dormindo. Buñuel sinaliza o sonho com a imagem de Pedro se levantando, sobreposta à dele dormindo na cama. O sonho é o espaço do surreal e nessa cena Buñuel nos indica o desejo de Pedro de escapar do destino que lhe espera enquanto moserável fadado à marginalidade nos subúrvios da cidade do México. Jaibo foi o assassino de Julián em cena testemunhada por Pedro. Infelizmente, Pedro não conseguirá escapar de seu destino. Apesar de sua vontade, o acaso frustrará suas tentativas de mudar de vida.

Como se pode verificar em  http://www.brasilescola.com/historiag/surrealismo.htm, o surrealismo foi um movimento artístico que surgiu na Europa, cujo marco inicial foi o Manifesto Surrealista de André Breton, publicado em 1924. O surrealismo criticou a racionalidade burguesa em favor do maravilhoso, do fantástico e dos sonhos, abarcando uma grande quantidade de artistas, entre eles, podemos citar: na literatura, André BretonLouis Aragon, Philippe Soupault e outros; nas artes plásticas, Joán Miró, Max Ernst, Salvador Dalí e outros; na fotografia, Man Ray, Dora Maar e Brasaï; e, no cinema, Luís Buñuel.

O filme  Os Esquecidos não é me sua totalidade uma obra tipicamente suurealista. No entanto, a cena do sonho de Pedro nos remete de forma dolorida para um desejo de superação de um vir-a-ser que parece, em um primeiro momento, escapável, mas que, infelizmente, não será evitado. Pedro não consegue escapar da estrutura que o restringe, assim como, depois de sessenta e quatro anos ainda há muitos Pedros que não conseguem fugir de seus destinos miseráveis em nossa América Latina. Para eles, restam os poderes dos sonhos, como expostos de forma emocionante no texto de Anna Maria Bologh:

Os elementos aparentemente inverossímeis do sonho condensam, com bem nos apontou Freud (1990), as principais incógnitas do nosso psiquismo. E, Los Olvidados sintetizam o mundo interior de Pedro: o seu desejo de sobrevivência, os seus medos, e, sobretudo, o seu desejo de conquistar o afeto e a aprovação da mãe.

Eis aí um dos mais belos poderes dos sonhos, o de serem, como aponta Freud, "abençoados realizadores de desejos". Só no sonho é que Pedro se aproxima de sua mãe. Conversa com ela e é ouvido. Alimento do espírito. Apóia a cabeça em seu peito, e sente os braços dela que o envolvem. Alimento do corpo. O que o tecido do texto revelou como impossibilidade, a urdidura do sonho resgata para Pedro: o obscuro objeto do desejo, o amor de sua mãe. (p. 185).

Deve ser algo dessa natureza que me atrai no surrealismo. São os seus poderes que tornam possíveis desejos que a realidade social teima em mostrar utópicos.

Referências:

BALOGH, ANNA MARIA Los Olvidados: "...Infame Turba de Nocturnas Aves". in: CAÑIZAL, E. P.  (org.) Um Jato na Contramão: Buñuel no México. São Paulo: Editora Perspectiva, 1993, p. 171-185.

CAÑIZAL, EDUARDO PEÑUELA (org.) Um Jato na Contramão: Buñuel no México. São Paulo: Editora Perspectiva, 1993.




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